Futebol e cultura
Carlos Cartaxo
Além de esporte, futebol é cultura! Como a brisa em uma tarde de calor, esta frase parece ser de efeito; um retrato perfeito da obviedade que poderia ser composta de um conjunto sensível extraído de uma tela expressiva de Van Gogh; de fato, ela surgiu para mim em um estádio de futebol, mais especificamente no jogo Auto Esporte Clube e Associação Desportiva Picuiense, que aconteceu na primeira quinta-feira do corrente outubro no estádio de futebol Almeidão, em Parahyba, capital situada no ponto extremo oriental das Américas.
Os estudos multiculturais sempre me remeteram às tradições que constituem minha formação, por conseguinte, minha identidade latino-americana, brasileira, nordestina paraibana e picuiense, com profundas raízes da terra de padre Rolim, Cajazeiras, alto sertão da Paraíba. Esse caldeirão multicultural me fez atleta na adolescência e escritor na fase adulta; o que pude comprovar na ida a um estádio de futebol na capital paraibana.
Ao entrar, pela primeira vez, na imensa estrutura de engenharia do Almeidão, em Parahyba, me senti mais engenheiro e herdeiro de horas de estudos no universo da física e matemática. A imensidão da estrutura de concreto, me fez revisitar anos de estudos na engenharia mecânica, que poderia ser também na engenharia civil ou arquitetura. O fato é que, foi meu filho mais velho, Caio Cartaxo que abriu a porta do Almeidão e me motivou a ir assistir a memorável partida de futebol entre Auto Esporte Clube e Picuiense Futebol Clube.
O primeiro, é um clube que foi fundado em 7 de novembro de 1936, por iniciativa de um grupo de motoristas que se estabelecia na Praça do Relógio, no histórico Ponto de Cem Réis, na capital paraibana. A Wikipédia informa que, “por motivos até então desconhecidos, seu aniversário é comemorado a cada 7 de Setembro”, embora tenha sido fundado em novembro. “É o quarto maior vencedor do Campeonato Paraibano de Futebol entre os clubes ativos, com seis títulos: 1939 (invicto), 1956, 1958, 1987, 1990 e 1992. É detentor também do título da Copa Paraíba de 2011”. Portanto, afirma-se que o Auto Esporte é um clube classista, pois foi criado por um grupo de taxistas, portanto proletários do universo de condutores automobilísticos. Historicamente, após sua fundação, o clube foi transferido para Jaguaribe no sindicato dos rodoviários. Como disse Caio Cartaxo, “achei curioso o fato de que o mascote do Auto Esporte é o macaco; isso se deve ao fato de usarem macacos nos veículos”. Portanto, como engenheiro e motorista, ratifico minha identidade cultural com o Auto Esporte Clube. Já o Picuiense me remete a minha primeira infância, como o fedelho que corria atrás de uma bola, feita de meias velhas rasgadas, lá em Picuí; poucas foram às vezes que tive a oportunidade de brincar com uma bola de couro nas proximidades da Maricota. Mas, o marcante na minha ligação cultural com o futebol foi o fato de que quando garoto pequenino, meu pai me levou a Natal, capital do Rio Grande no Norte, para assistir a uma partida de futebol profissional. O tempo correu e só na fase adulta descobri que aquela viagem foi para assistir o Santos de Pelé contra o América potiguar. Na época, eu não fazia ideia da importância daquele momento; hoje entendo a sensibilidade de meu pai de me levar para testemunhar aquele acontecimento desportivo com a presença do Rei do futebol. Quando estava a morar em Barcelona, Espanha, fui ao Camp Nou, assistir o Futbol Club Barcelona jogar, foi outro momento marcante. Pois bem, a semana passada foi a vez do meu filho me levar ao estádio Almeidão para iluminar meu coração naquela inesquecível partida de futebol que reconduziu o Auto Esporte Clube à categoria da primeira divisão do futebol paraibano.
A primeira associação que faço entre futebol e cultura é construída a partir da literatura do dramaturgo Nelson Rodrigues, pernambucano radicado no Rio de Janeiro, originário de uma família de jornalistas e escritores. Depois me vem à mente o jornalista paraibano Phelipe Caldas, autor dos livros: “O menino que queria jogar futebol: uma história de fé e superação”, adaptado para o cinema; e “Além do futebol: paixões, dores e memórias sobre um jogo de bola”. Lembro também o colega, engenheiro mecânico, Edvaldo Nunes, também poeta e escritor, que contribuiu para a associação entre futebol e cultura com o livro, apaixonante, “Um Belo campeão, uma vida que segue: A década de 1930 do Botafogo da Paraíba”, parte da história do Botafogo Futebol Clube da Paraíba, originalmente conhecido como belo. Essa conexão também se dá através de meu filho, jornalista profissional, Iaco Lopes Cartaxo, especialista em esporte, repórter da TV Cabo Branco/Rede Globo, que defendeu o Trabalho de Conclusão de Curso na UFPB, sobre o Botafogo Futebol Clube da Paraíba, “O jogo por trás do jogo: como o dinheiro público impulsionou o Botafogo-PB ao título brasileiro da Série D em 2013”. Pois bem, dentre essas vivências e experiências que consolidaram em mim uma forte relação do futebol com a cultura, destaco igualmente o fato de que o pai de Phelipe Caldas, Francisco Caldas, o querido Chicão, foi meu professor quando eu cursava engenharia mecânica na UFPB. Essas particularidades na linha do tempo da minha vida são singelas demonstrações da sólida ligação entre futebol e cultura que contribuíram, diretamente, para minha formação profissional e cidadã.
Iaco Lopes Cartaxo
A foto de Iaco Lopes Cartaxo trabalhando, quando eu estava na arquibancada, expõe a força das cores, vermelho e branco, na imagem visual do Auto Esporte. Demonstra além do aspecto denotativo, a representação conotativa e a expressão cultural do Clube que fortalece o cordão umbilical com a torcida. Para explicar melhor essa conexão, me remeto a María Acaso, para explicar essa relação simbólica:
Todos os sinais, incluindo os sinais visuais, funcionam a partir de dois níveis: o nível semântico e o nível de significado. O nível semântico tem a ver com o que se chama de significante, e consiste no aspecto material do signo, ou seja, sua parte física, que aborda o objetivo e o consciente. O discurso denotativo emerge do significante, uma espécie de mensagem não codificada (Barthes a define como “uma mensagem icônica não codificada”) através da qual os elementos da imagem são listados e descritos, sem qualquer projeção avaliativa e/ou cultural. Podemos dizer que é a mensagem objetiva de um signo.
Por outro lado, o significado é o conceito ou unidade cultural que se outorga ao signo através de uma convenção socialmente estabelecida. Atende ao subjetivo e ao inconsciente e dele emerge o discurso conotativo, em que o observador interpreta livremente os elementos da imagem... Podemos dizer que é a mensagem subjetiva de um signo”. (Acaso, 2006, p. 41-42).
O tema em pauta comporta além da concepção acadêmica de María Acaso, abordagens teóricas de autores consagrados como Dietrich Schwanitz que traça uma linha sólida na história da cultura, que dá sentido aos valores que contribuem para a evolução social e cultural da humanidade. Schwanitz defende a tese de que a trajetória da história da humanidade tem como alicerce a multiculturalidade; ideia que comungo porque converge para a linha conceitual que aproxima a cultura do esporte e vice-versa, conforme se constata, por exemplo, com a trajetória traçada que vai dos jogos olímpicos na Grécia Antiga aos jogos na Pós-modernidade, com destaque evidente à evolução participativa da mulher nos desportos, fortalecendo seu empoderamento em vários segmentos sociais e periféricos tendo como resultado conquistas significativas na economia, na política, na cultura e evidentemente no esporte. Essa concepção multicultural, evolutiva, também pode ser aprofundada a partir dos estudos de Alejandro Grimson sobre os limites da cultura, inclusive, com foco sobre a questão da cultura e identidade, o que é o caso da identidade cultural construída através da história das paixões do/as torcedore/as pelos seus clubes. A ligação entre torcidas de uma determinada agremiação, aproxima pessoas, criam laços identitários que as fazem ter muito em comum; no caso, a paixão pelo mesmo clube e pelo esporte. Foi assim que me senti identitariamente ligado às pessoas que estavam em volta de mim, na arquibancada do Almeidão, torcendo para a vitória do Auto Esporte.
No estádio de futebol me senti representado por ser torcedor de um Clube que tem representatividade histórica e popular. Entre os presentes se viam casais e famílias completas, inclusive com crianças de todas as idades. Contrário ao culto do corpo tão propalado no atual contexto pós-moderno da estética do consumo e do modismo, o que se via nas arquibancadas eram expressões espontâneas com o foco no coletivo, representado pelo Clube que estava no gramado, e não na individualização dos sujeitos torcedores. A heterogeneidade era a composição coletiva do ambiente, o que converge para o conceito multicultural da diversidade e respeito pelo próximo; de maneira que, com a ida ao estádio Almeidão, me convenci que a relação entre futebol e cultura é o mesmo laço que conecta o esporte à vida humana.
Referências
Livros
A cara da mídia. - Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
ACASO, María. El lenguaje visual. Barcelona: Paidós, 2006.
CALDAS, Phelipe, Além do futebol: paixões, dores e memórias sobre um jogo de bola. João Pessoa: Ideias, 2016.
____ O menino que queria jogar futebol: uma história de fé e superação. João Pessoa: Ideias, 2018.
GRIMSON, Alejandro. Los límites de la cultura: critica de las teorías de la identidad. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.
SCHWANITZ, Dietrich. Cultura: tudo o que se precisa saber. Alfragide: Publicações Don Quixote, 2012.
Internet
https://pt.wikipedia.org/wiki/Auto_Esporte_Clube_(Para%C3%ADba)