Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

domingo, 6 de outubro de 2024

Futebol e cultura

 Futebol e cultura


Carlos Cartaxo


  Além de esporte, futebol é cultura! Como a brisa em uma tarde de calor, esta frase parece ser de efeito; um retrato perfeito da obviedade que poderia ser composta de um conjunto sensível extraído de uma tela expressiva de Van Gogh; de fato, ela surgiu para mim em um estádio de futebol, mais especificamente no jogo Auto Esporte Clube e Associação Desportiva Picuiense, que aconteceu na primeira quinta-feira do corrente outubro no estádio de futebol Almeidão, em Parahyba, capital situada no ponto extremo oriental das Américas.


    Os estudos multiculturais sempre me remeteram às tradições que constituem minha formação, por conseguinte, minha identidade latino-americana, brasileira, nordestina paraibana e picuiense, com profundas raízes da terra de padre Rolim, Cajazeiras, alto sertão da Paraíba. Esse caldeirão multicultural me fez atleta na adolescência e escritor na fase adulta; o que pude comprovar na ida a um estádio de futebol na capital paraibana.  

Ao entrar, pela primeira vez, na imensa estrutura de engenharia do Almeidão, em Parahyba, me senti mais engenheiro e herdeiro de horas de estudos no universo da física e matemática. A imensidão da estrutura de concreto, me fez revisitar anos de estudos na engenharia mecânica, que poderia ser também na engenharia civil ou arquitetura. O fato é que, foi meu filho mais velho, Caio Cartaxo que abriu a porta do Almeidão e me motivou a ir assistir a memorável partida de futebol entre Auto Esporte Clube e Picuiense Futebol Clube.

Pai e filho

O primeiro, é um clube que foi fundado em 7 de novembro de 1936, por iniciativa de um grupo de motoristas que se estabelecia na Praça do Relógio, no histórico Ponto de Cem Réis, na capital paraibana. A Wikipédia informa que, “por motivos até então desconhecidos, seu aniversário é comemorado a cada 7 de Setembro”, embora tenha sido fundado em novembro. “É o quarto maior vencedor do Campeonato Paraibano de Futebol entre os clubes ativos, com seis títulos: 1939 (invicto), 1956, 1958, 1987, 1990 e 1992. É detentor também do título da Copa Paraíba de 2011”. Portanto, afirma-se que o Auto Esporte é um clube classista, pois foi criado por um grupo de taxistas, portanto proletários do universo de condutores automobilísticos. Historicamente, após sua fundação, o clube foi transferido para Jaguaribe no sindicato dos rodoviários. Como disse Caio Cartaxo, “achei curioso o fato de que o mascote do Auto Esporte é o macaco; isso se deve ao fato de usarem macacos nos veículos”. Portanto, como engenheiro e motorista, ratifico minha identidade cultural com o Auto Esporte Clube. Já o Picuiense me remete a minha primeira infância, como o fedelho que corria atrás de uma bola, feita de meias velhas rasgadas, lá em Picuí; poucas foram às vezes que tive a oportunidade de brincar com uma bola de couro nas proximidades da Maricota. Mas, o marcante na minha ligação cultural com o futebol foi o fato de que quando garoto pequenino, meu pai me levou a Natal, capital do Rio Grande no Norte, para assistir a uma partida de futebol profissional. O tempo correu e só na fase adulta descobri que aquela viagem foi para assistir o Santos de Pelé contra o América potiguar. Na época, eu não fazia ideia da importância daquele momento; hoje entendo a sensibilidade de meu pai de me levar para testemunhar aquele acontecimento desportivo com a presença do Rei do futebol. Quando estava a morar em Barcelona, Espanha, fui ao Camp Nou, assistir o Futbol Club Barcelona jogar, foi outro momento marcante. Pois bem, a semana passada foi a vez do meu filho me levar ao estádio Almeidão para iluminar meu coração naquela inesquecível partida de futebol que reconduziu o Auto Esporte Clube à categoria da primeira divisão do futebol paraibano.

    A primeira associação que faço entre futebol e cultura é construída a partir da literatura do dramaturgo Nelson Rodrigues, pernambucano radicado no Rio de Janeiro, originário de uma família de jornalistas e escritores. Depois me vem à mente o jornalista paraibano Phelipe Caldas, autor dos livros: “O menino que queria jogar futebol: uma história de fé e superação”, adaptado para o cinema; e “Além do futebol: paixões, dores e memórias sobre um jogo de bola”. Lembro também o colega,  engenheiro mecânico, Edvaldo Nunes, também poeta e escritor, que contribuiu para a associação entre futebol e cultura com o livro, apaixonante, Um Belo campeão, uma vida que segue: A década de 1930 do Botafogo da Paraíba”, parte da história do Botafogo Futebol Clube da Paraíba, originalmente conhecido como belo. Essa conexão também se dá através de meu filho, jornalista profissional, Iaco Lopes Cartaxo, especialista em esporte, repórter da TV Cabo Branco/Rede Globo, que defendeu o Trabalho de Conclusão de Curso na UFPB, sobre o Botafogo Futebol Clube da Paraíba, “O jogo por trás do jogo: como o dinheiro público impulsionou o Botafogo-PB ao título brasileiro da Série D em 2013”. Pois bem, dentre essas vivências e experiências que consolidaram em mim uma forte relação do futebol com a cultura, destaco igualmente o fato de que o pai de Phelipe Caldas, Francisco Caldas, o querido Chicão, foi meu professor quando eu cursava engenharia mecânica na UFPB. Essas particularidades na linha do tempo da minha vida são singelas demonstrações da sólida ligação entre futebol e cultura que contribuíram, diretamente, para minha formação profissional e cidadã.

Iaco Lopes Cartaxo

A foto de Iaco Lopes Cartaxo trabalhando, quando eu estava na arquibancada, expõe a força das cores, vermelho e branco, na imagem visual do Auto Esporte. Demonstra além do aspecto denotativo, a representação conotativa e a expressão cultural do Clube que fortalece o cordão umbilical com a torcida. Para explicar melhor essa conexão, me remeto a María Acaso, para explicar essa relação simbólica:

Todos os sinais, incluindo os sinais visuais, funcionam a partir de dois níveis: o nível semântico e o nível de significado. O nível semântico tem a ver com o que se chama de significante, e consiste no aspecto material do signo, ou seja, sua parte física, que aborda o objetivo e o consciente. O discurso denotativo emerge do significante, uma espécie de mensagem não codificada (Barthes a define como “uma mensagem icônica não codificada”) através da qual os elementos da imagem são listados e descritos, sem qualquer projeção avaliativa e/ou cultural. Podemos dizer que é a mensagem objetiva de um signo.

Por outro lado, o significado é o conceito ou unidade cultural que se outorga ao signo através de uma convenção socialmente estabelecida. Atende ao subjetivo e ao inconsciente e dele emerge o discurso conotativo, em que o observador interpreta livremente os elementos da imagem... Podemos dizer que é a mensagem subjetiva de um signo”. (Acaso, 2006, p. 41-42).

O tema em pauta comporta além da concepção acadêmica de María Acaso, abordagens teóricas de autores consagrados como Dietrich Schwanitz que traça uma linha sólida na história da cultura, que dá sentido aos valores que contribuem para a evolução social e cultural da humanidade. Schwanitz defende a tese de que a trajetória da história da humanidade tem como alicerce a multiculturalidade; ideia que comungo porque converge para a linha conceitual que aproxima a cultura do esporte e vice-versa, conforme se constata, por exemplo, com a trajetória traçada que vai dos jogos olímpicos na Grécia Antiga aos jogos na Pós-modernidade, com destaque evidente à evolução participativa da mulher nos desportos, fortalecendo seu empoderamento em vários segmentos sociais e periféricos tendo como resultado conquistas significativas na economia, na política, na cultura e evidentemente no esporte. Essa concepção multicultural, evolutiva, também pode ser aprofundada a partir dos estudos de Alejandro Grimson sobre os limites da cultura, inclusive, com foco sobre a questão da cultura e identidade, o que é o caso da identidade cultural construída através da história das paixões do/as torcedore/as pelos seus clubes. A ligação entre torcidas de uma determinada agremiação, aproxima pessoas, criam laços identitários que as fazem ter muito em comum; no caso, a paixão pelo mesmo clube e pelo esporte. Foi assim que me senti identitariamente ligado às pessoas que estavam em volta de mim, na arquibancada do Almeidão, torcendo para a vitória do Auto Esporte.

No estádio de futebol me senti representado por ser torcedor de um Clube que tem representatividade histórica e popular. Entre os presentes se viam casais e famílias completas, inclusive com crianças de todas as idades. Contrário ao culto do corpo tão propalado no atual contexto pós-moderno da estética do consumo e do modismo, o que se via nas arquibancadas eram expressões espontâneas com o foco no coletivo, representado pelo Clube que estava no gramado, e não na individualização dos sujeitos torcedores. A heterogeneidade era a composição coletiva do ambiente, o que converge para o conceito multicultural da diversidade e respeito pelo próximo; de maneira que, com a ida ao estádio Almeidão, me convenci que a relação entre futebol e cultura é o mesmo laço que conecta o esporte à vida humana. 

 

Referências

Livros

A cara da mídia.  - Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

ACASO, María. El lenguaje visual. Barcelona: Paidós, 2006.

CALDAS, Phelipe, Além do futebol: paixões, dores e memórias sobre um jogo de bola. João Pessoa: Ideias, 2016.

____ O menino que queria jogar futebol: uma história de fé e superação.  João Pessoa: Ideias, 2018.

GRIMSON, Alejandro. Los límites de la cultura: critica de las teorías de la identidad. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores,  2011.

SCHWANITZ, Dietrich. Cultura: tudo o que se precisa saber. Alfragide: Publicações Don Quixote, 2012. 

Internet

https://pt.wikipedia.org/wiki/Auto_Esporte_Clube_(Para%C3%ADba)



terça-feira, 2 de julho de 2024

Tempo perdido?

               Tempo perdido?

Carlos Cartaxo


O tempo está na vida de todos nós a reger nosso âmago, dando significado às nossas emoções e estimulando os sentidos através da música, da literatura, do cinema, da moda, da visualidade e das memórias compostas durante os anos vividos. Assim, ele dirige o nosso amadurecimento, tendo em vista que por nossas vidas, passaram muitas pessoas, poucos livros, imagens sem legendas em momentos inesquecíveis ou esquecíveis. Enquanto há vida, há oportunidades para retomar situações e fazer com que o tempo perdido possa ser recuperado Seguindo essa lógica, eu descrevo situações em que o tempo carimbou sua marca com o brilho inexorável das auroras desavergonhadas que demarcam nossa forma de ser. 

Eu estava a caminhar na praia quando tive a oportunidade de conhecer Maria, entre ondas e raios solares que irradiavam uma doçura que contrastava com o sal da água do mar. Mulher de uma formosura brilhante; cor de jambo, silhueta de flor, que faz de qualquer pessoa um ser perdido no tempo. Estivemos por mais de uma hora em conversa, superficiais, bobagens desprovidas de sentidos complexos; todavia, na simplicidade que conduz a curiosidades e descobertas. Com alguns minutos de prosa, ela soube que eu sou escritor. Um escritor sem reconhecimento, é verdade; quiçá despretensioso. Considerei que aquela tenha sido a primeira vez que ela conversou frente a frente com um escritor. Algo que poderia ser marcante, porque essa categoria de gente, digamos… intelectual, não fazia parte do universo relacional dela e, apesar disso, a conversa fluiu e não fez diferença alguma pôr, ou não, letras em um papel. Com a expressão natural de quem não pensa o que fala, ela foi taxativa: “eu não gosto de ler, nunca gostei, até tentei muito na faculdade; mas, não gosto mesmo, não entra!” e completou com a pergunta: “o que eu faço para gostar de leitura”? Maria não apreciava mesmo o ato de ler, o que é natural para muita gente. A amizade tomou corpo e no Natal, presenteei-a com um livro meu de contos e, claro, ficou surpresa; o sorriso demonstrava gratidão. Não obstante o presente inusitado, suas mãos seguraram o objeto de papel sem cuidado e, em seu rosto, nenhum entusiasmo, na verdade, um certo desprezo. Até hoje não sei se o presente se tornou um ser abjeto em uma estante ou no fundo de uma caixa empoeirada. Presenteá-la com um livro teria sido Tempo Perdido?

Eu tenho um vizinho que é um militar aposentado; defensor do estado mínimo, costuma argumentar que pobre não gosta de trabalhar. A aposentadoria o deixou ocioso e fortaleceu seu hábito de fofocar; mas, não de ler. Sabe tudo o que acontece no bairro e quando pode triplica a informação. De tanto tomar cervejas, já apresentava uma barriga além da boa forma que, sendo ele um ex-militar deveria se apresentar; pois bem, no seu aniversário eu o presenteei com um livro meu, de contos, Contatos. Lembro que ao presenteá-lo com minha obra autografada, seu olhar parecia perdido no tempo e se transformou em algo indecifrável, vago, disperso entre um funeral e o carnaval. Três anos depois do regalo, descobri que ele não tinha lido um conto sequer. Os sonhos barulhentos com tiros, armas, assassinatos e a procura do poder de outrora, nos anos agora vazios, não provocaram estímulos à leitura. Esse era mais um vizinho que não gostava de ler. Eu poderia considerar Tempo Perdido?



Ela era de uma gentileza inacreditável. Se eu não a conhecesse, certamente não acreditaria existir uma pessoa como aquela. O marido engenheiro era sabido demais. Sabia tanto que era pobre e pensava que era rico ou que o tempo perdido apenas lhe dava o direito de sonhar que era rico. Ela cozinhava muito bem e tinha a gentileza de me convidar para partilhar de alguns momentos familiar, gastronômico e alcoólico. Não sei bem se era minha conversa, a arquitetura diferenciada de minha casa de livros que fez com que o casal sempre me convidasse para a partilha de bons e divertidos momentos. Quando ela aniversariou eu a presenteei com meu livro de contos. Fizeram uma festa com esse meu filho de papel, com direito até a aplausos. Tempo perdido,Três anos depois descobri que ela não leu uma única folha do bendito trabalho por mim escrito.

O convite foi aceito. Fui recebê-la no portão. Primeiro colocamos uma mesa e duas cadeiras e ficamos de frente à praia para ver a lua rasgar o horizonte e tocar nossos corações. O sorriso lindo que encontrei no portão cedia para um olhar penetrante concentrado no infinito, como que pronto para ser flechado por um cupido que estava por chegar. A pouca luz escondia a delicadeza da estampa de seu vestido e deixava as curvas faciais mais femininas. Era a sutileza do desenho da face de uma mulher elegante, algo que há muito eu não desfrutava com uma boa prosa. Entre um copo e outro, a lua deu sinal de vida e nos presenteou com seus primeiros raios. Conversas foram e conversas vieram sobre filmes, livros, arte e um banho de cultura. Como sou um defensor da natureza e contra a poluição, me surpreendi quando ela disse, sob o brilho lunar, que sentia falta de um cigarro. O paradoxo de estar diante de uma mulher esplendorosa; mas, poluidora; me fez um frágil pássaro sedento diante de uma água poluída. Inexorável como a atitude de um verdadeiro ambientalista, meu encanto sumiu como a lua por trás de uma nuvem. Sempre que a vejo me pergunto: o brilho daquela luau foi um tempo perdido?

O francês resolveu se tornar meu vizinho; chegou falando o que ninguém entendia, embora ele demonstrasse conhecer um pouco do idioma português. Aquele sotaque puxado do erre é o que o fazia pouco compreensível. Mas, nos comunicamos bem, afinal somos defensores do meio ambiente e estamos no mesmo campo da compreensão sobre o respeito humano, a empatia, resiliência e o conceito inclusivo de que somos gente, portanto irmãos, pertencentes a uma única raça, a humana. Pois bem, no seu aniversário lá estava minha vizinha gentil e ótima chef gastronômica, com seu respectivo marido e o militar reformado, parceiro de caminhada. Como sempre faço, presenteei o aniversariante com meu livro de contos. Como sou o escritor menos lido no planeta terra, acreditei que daquela vez um estrangeiro poderia ler um livro meu, o que já seria uma grande conquista. Os participantes do aniversário, que já tinham o livro, falaram muito bem de minha pessoa; não obstante, nem uma palavra sobre o trabalho literário que estava sobre a mesa e, por toda a noite, as histórias registradas no papel passaram despercebidas. O amigo francês, aniversariante, fez questão de nos fotografar com o presente. Se ele vai ler eu não sei; contudo, eu sou um homem de fé e, como o escritor menos lido, me pergunto se o tempo foi perdido.

Tenho clareza que a escola tem um papel importante no estímulo à leituras e na formação de leitores; por conseguinte, na constituição de uma sociedade culta e bem informada. Nesse sentido lamento que esses personagens aqui descritos, e os demais adjacentes, nunca tenham tido a oportunidade de ler o livro “Poemas para crianças”, organizado por Hélder Pinheiro, para ter a oportunidade de adentrar no universo poético já na infância e acender a chama que iluminaria, a partir do coração, a sensibilidade para brincar com palavras, imagens e leitura de mundo por toda uma vida. Como parte dessa injeção de ânimo ao universo imaginário, registro aqui a obra de Marisa Lajolo: “Do mundo da leitura para a leitura do mundo”, que, certamente, a maioria de nós não teve a oportunidade de desfrutar quando da passagem pela formação escolar. A autora ratifica a importância do acesso ao universo literário já nas fases iniciais da escola e sugere, inclusive, a convergência da literatura às expressões artísticas quando afirma:

Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para despertar e desenvolver o gosto (quase sempre chamado de hábito) pela leitura, encontram-se a transformação do texto narrativo em roteiro teatral e subsequente encenação; a reprodução, em cartazes ou desenhos, do tema, da história ou de personagens do livro (Lajolo, 1999, p. 70). 


A falta de imersão literária com qualidade na escola, consequentemente, estimulante e motivadora, resulta em uma formação estética fragmentada, para não dizer debilitada. Inclusive com prejuízos para a compreensão estética do que nos é apresentado; principalmente agora que estamos na era da visualidade e da simplificação de informações. É o minimalismo do texto advindo da pouca leitura. Considero que o livro “O belo como categoria estética”, de Álvaro Pina, faz falta na reparação do tempo perdido que meus personagens deixaram esvair pela vida. Aqui cabe bem o argumento de que muitas pessoas veem muito, mas enxergam pouco.



Sempre acreditei que escrever um livro é gerar um filho. Um ato tão complexo que foi motivo de um tratado de Schopenhauer, obra intitulada: “A arte de escrever”. Publicá-lo é parir; logo, cada livro que concluo é um filho que irá trilhar por mãos e iluminar, com menos ou mais intensidade, a consciência e o coração das pessoas que os leiam. Assim eu tento driblar o tempo na labuta de escritor. Para complementar essa trajetória construí uma casa com tijolos aparentes que, no meu imaginário, parecem livros sobrepostos. Na cumeeira há um feixe de luz, invisível, um farol direcionado para o mar com o intuito de  alumiar o tempo perdido.


Referências

CARTAXO, Carlos. Contatos: João Pessoa, Editora do CCTA, 2014 

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Editora Ática, 1999.

PINA, Álvaro. O belo como categoria estética. Lisboa: Livros Horizontes, 1982.  

PINHEIRO, Hélder (org). Poemas para crianças: reflexões, experiências, sugestões. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2007.


quinta-feira, 13 de junho de 2024

Complexo de grandeza

                                             Complexo de grandeza

Carlos Cartaxo


O mês de junho é marcante para o Nordeste brasileiro por causa das festas juninas que animam a zona rural, passa pelas pequenas cidades e chega à capital; são eventos que fazem parte da identidade cultural do nosso povo. Nos festejos há uma multiplicidade de sentidos, sensações e sabores; é a vida ornamentada de alegria. Muitos causos proliferam, outros dançam, cantam e acendem fogueiras; ações que, no todo, fortalecem as narrativas da cultura popular. Os eventos se multiplicam e alguns fazem uso do superlativo para dar ênfase e qualificar sua festa como a maioral.

O uso do complexo de grandeza vai além da abordagem cultural; por exemplo, se ouve que a maior mata atlântica urbana originária é a mata do buraquinho em Parahyba. O maior São João do mundo fica na cidade de Campina Grande, na Paraíba; já o melhor São João do mundo está em Caruaru, Pernambuco. Em Sergipe se diz que é o país do forró. A maior avenida em linha reta do Brasil é a Caxangá, em Recife, com 6,2 km; corta os bairros da Madalena, Zumbi, Cordeiro, Iputinga, Caxangá e Várzea; também há quem diga que Pernambuco tem a bandeira mais bonita do mundo; da mesma forma, dizem que o carnaval de Olinda é o melhor do mundo.

Os superlativos têm fragilidades e estas geram contrapontos porque daí surgem lendas urbanas. Para que ter a maior mata urbano do Brasil se a mesma mata atlântica está sendo desmatada a poucos quilômetros dali, no litoral paraibano? Para que ter o maior  ou o melhor São João do Mundo se as manifestações da cultura popular existem e são resistentes a festivais de músicas que levam o nome de São João? Para que ter a maior avenida em linha reta do Brasil se o trânsito e a mobilidade urbana são um inferno?

De fato, o complexo de grandeza esconde ruídos na comunicação, mensagens duvidosas, falsas e verídicas, geram mitos que fortalecem a autoestima de muitos; mas, também cria desconfiança, portanto descrédito; chega a ser motivo de chacota e piadas irônicas. A imagem de grandeza pode comunicar uma descrença sobre a possível veracidade e, porque não, passar um sentimento de fragilidade que necessita da suposta sensação de grandeza para fazer valer o subterfúgiu do verdadeiro valor. 

Em contraponto ao complexo de grandeza, indago sobre que parâmetros esses superlativos são propalados para garanti-la como verdade? O ser superlativo corresponde a algo que exprime uma superioridade a outrem, que se enquadra em um grau muito elevado ou mais elevado do que seus correspondentes. Essa abordagem acentua o caráter quando a grandeza passa a ter valor de excelência desqualificando os demais. O complexo de grandeza se desloca do real para se fazer mais importante do que realmente é, mantendo a falsa aparência de que está no patamar do normal, autêntico, logo não ficcional.

O que de fato contribui para a multiplicação do complexo de grandeza? Marketing, lucro, vaidade, prestígio, mentira (“fake news”)? Enfim, parece que o conceito de “achismo” é o que prevalece porque pelo mundo afora se vê tantos eventos e monumentos maravilhosos que caberiam muito bem em um laço de grandiosidade; todavia, ao contrário, o conteúdo e a essência é o que fundamentam a notoriedade e a importância da cidade, da manifestação artística, da personalidade, etc.


     Foto: Carlos Cartaxo

Eu vivenciei alguns momentos que ficaram gravados em meu âmago pela beleza, emoção, conteúdo e importância da cena e, nem por isso, nenhuma dessas situações são frutos de complexo de grandeza. Por exemplo, tive a oportunidade de pegar um trem, com o casal amigo: Penha dos Santos e Erik Van Der Pol, em Lelystad, Países Baixos, também conhecida por aqui de Holanda, com destino a Haarlem, cidade que data do Século X, que tem, além de uma bela arquitetura e história excepcionais, o que me encantou e, por isso, merecia um superlativo foi a igreja gótica de Saint Bavos. É um templo belo, esplendoroso; contudo, a minha visita se tornou memorável quando me deparei com a grandiosidade do órgão, que é um instrumento, simplesmente, lindo e enorme; para complementar, foi lá que, ainda garoto, com apenas 10 anos, Wolfgang Amadeus Mozart tocou, no século XVIII, momento em que este realizava viagens com a família, pela Europa, para fazer concertos. Lá ele tocou irradiando seu talento pelo espaço da feérica arquitetura sacra. Ao fotografar a placa que noticia a passagem ali do prodígio Amadeus, me senti em um estágio de êxtase, fascínio que trago comigo desde que assisti o filme Amadeus; película emblemática sobre o referido ouvido absoluto do virtuose e prodigioso artista. Na igreja gótica de Saint Bavos também tocaram os brilhantes compositores alemães Händel e Felix Mendelssohn.

                                                                Foto: Carlos Cartaxo


As viagens em busca de experiências e conhecimentos artísticos me levaram a Veneza, Itália. Eu tive a oportunidade de vivenciar uma Bienal de Arte de Veneza e fortalecer meu conceito sobre arte moderna e contemporânea, que prefiro denominar pós-moderna. A maioria das pessoas vão a Veneza fazer turismo romântico, o que é admirável. Não obstante, eu fui a busca de arte e de história. Ao dobrar esquinas e caminhar por vielas, ilhas interligadas por charmosas pontes, janelas ornamentadas com flores e detalhes arquitetônicos, cujas belezas eu nunca vira, encontrei uma casa, precisando de restauração é verdade, que tinha uma placa que citava Antonio Vivaldi, dizia: “Esta igreja é obra escolhida pelo arquiteto veneziano Giorgio Massari, sua acústica perfeita, a tradição adora lembrar as intenções brilhantes e os gentis conselhos de Antonio Vivaldi como diretor”. Vivaldi foi sacerdote católico, além de exímio compositor veneziano e intérprete. Aquele momento veneziano, no início do século XXI, me fez viajar no tempo e me situar no final do século XVII, início do século XVIII quando o brilho da música barroca flutuava pelos ares da República de Veneza, hoje Itália. Sob o frio do inverno, solicitei a um desconhecido para registrar aquele momento que, apesar de ser num frio de 7 graus, me punha no seio das quatro estações. 


Outra sensação que arrastou de dentro de mim um grau de emoção indescritível, foi quando, no início da noite fria veneziana, eu voltava de um dia imerso na Bienal de Arte e me vi diante do Teatro Carlo Goldoni. Esse autor, do século XVIII, foi determinante na minha formação de dramaturgo e de intérprete de comédia e peças infantis. Então, mais uma vez, parei e fui tomada por uma carga emotiva. Lembro que o ar gélido não escondeu a lágrima que insistia brotar dos olhos que não acreditavam no que viam. Entre o século XVIII de Goldoni e o meu Século XXI, muita água passou por baixo das mais de quatrocentas pontes de Veneza.


                                                             Foto; Carlos Cartaxo

Os três momentos citados na escala do tempo e nas minhas andanças, por si só, não são lembrados por força de alguma bandeira retratada por complexo de grandeza; mas, porque eles traduzem parte do meu aprendizado e acrescentam no que concerne a minha formação cultural. 

As cidades encantadoras dos Países Baixos com suas riquezas históricas, culturais e arquitetônicas, assim como Veneza não se consideram as cidades mais importantes do mundo. O fio que tece o complexo de grandeza não costura a riqueza daquelas urbes e daqueles povos. Diante da amplitude cultural que permeia nosso planeta, não vejo motivos para se pautar valores com base em complexos de superioridade; sendo assim, qual o papel dessa deformação, no caso o complexo de grandeza, na composição de uma sociedade desenvolvida?

Há que se voltar à teoria da evolução do pensamento de Vigotski e Piaget para saber até que ponto o complexo de grandeza interfere na formação da criança e, por conseguinte, na estrutura social. Ao meu ver, ações superlativas com intuito marqueteiro só fere a identidade cultural de povos, portanto instaura deformações sociais.

O complexo de superioridade, que nesse texto optei por denominar complexo de grandeza, é uma expressão original de Alfred Adler que objetiva explicar o mecanismo “subconsciente de compensação neurótica” oriundo de significativos sentimentos inferiores. Quando abordamos essa tese pela ótica histórico cultural, concluímos que todas essas afirmações quantitativas de suntuosidade que, principalmente, a indústria cultural e os marqueteiros usam tanto, não passam de sentimentos qualitativos de rejeição social; é inferiorização reprimida. A questão é saber se, de fato, é necessário inferiorizar o outro para justificar a própria grandeza?

A psicologia do indivíduo foi o foco de Alfred Adler. Não obstante, o nosso caso se volta ao coletivo, mais especificamente à afirmação de Identidades culturais; destarte, levanto a tese de que quem expressa complexo de grandeza no universo artístico cultural e empresarial, o faz porque, por trás do lucro, intenta seus sentimentos de inferioridade nos outros que, por conseguinte, se percebem como seres diminutos, possivelmente pelas mesmas razões pelas quais podem ter sido colocados na posição de desterro, isto é, refletem dentro de si a condição inferiorizada de incompetentes, desqualificados, portanto, menores. Em contrapartida, os seres rebaixados não se dão conta de que o reconhecimento não crítico do superlativo fortalece o complexo de grandeza daqueles que se colocam artificialmente na posição de maioral, ratificando o orgulho concomitante com arrogância e petulância.

O propósito de adoção do complexo de grandeza não corresponde a ações ingênuas, muito menos descabidas; tudo é planejado, traçado em detalhes. Não se trata de uma opinião sobeja que valoriza positivamente o que de fato merece legitimidade; mas, de imputar expectativas exageradas com o fim de atingir um grau de grandeza acima dos demais, colocando os outros em posição de inferioridade. As informações quantitativas propaladas não são comprovadas com dados científicos; mas, apenas com superlativo que fortalece, por caminhos enganosos, a vaidade e o orgulho, por conseguinte, estimula um sentimentalismo exacerbado através do falso e/ou dúbio convencimento, gerando um descrédito nas outras ações e realizações. Esse procedimento imputa créditos de domínio sobre a informação que interessa ser divulgada. Sendo assim, o complexo de grandeza Institui fragilidade e desfavor em todos que são párias de concorrência, ferindo a lógica real e criando um mundo irreal, porém crível por muitos, inclusive pelo mercado.

Estudiosos da psicologia tratam esse fator como patologia humana; eu acrescento que também é uma patologia do capital, ou seja, a segunda é derivada da primeira; além de que interfere na identidade de uma comunidade, de um povo. Foi com base nesse conceito que cito, neste artigo, cenários e personagens emblemáticas no mundo que poderiam ser divulgadas de forma superlativa; contudo, não o são porque o foco é estético, o belo e o conteúdo, e não a escala de grandeza. 


Referências

ADLER, Alfred.Práctica y Teoría de La Psicología del Individuo. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1958.

https://taniaosanipsicologia.com.br/blog/o-que-e-um-complexo-de-superioridade/

terça-feira, 7 de maio de 2024

A arte na (de) rua de Igor Mitoraj

  A arte na (de) rua de Igor Mitoraj

Carlos Cartaxo


    O olhar atento é uma condição humana que pouco se usa. Só enxergar é muito pouco para as inúmeras possibilidades de ver, rever, apreciar e admirar o que a vida nos possibilita. Ao me deparar com o livro O olhar, organizado por Flávio Aguiar e Otília Arantes eu tive um impacto que me marcou profundamente pela profundidade dos escritores, artistas e pesquisadores que viam no olhar uma fonte de compreensão e debate sobre os encantos e valores da vida. É fato que precisamos nos alimentar de informações culturais e, principalmente, estéticas para que possamos decodificar o que nos é apresentado. É assim, é a vida, uns apenas veem; outros enxergam além de ver. 

    A arte de rua tem sido um álibi para meu âmago. Desfrutar de uma expressão humana apresentada a céu aberto, de forma gratuita é a oportunidade de desfrutar do belo que artistas expõem, através dos seus trabalhos. Há pouco tempo uma pessoa que mora no interior da Paraíba, esteve a me visitar e disse que nunca foi a um cinema. Eu achei natural porque milhões de pessoas nunca tiveram a oportunidade de ir a um cinema. Contudo, a arte que está acessível aos nossos olhos é pouco observada e, por conseguinte, pouco comentada. Essa situação despertou em mim a necessidade de escrever sobre o impacto que a arte de rua tem me propiciado há alguns anos. Primeiro foi na infância quando eu era atraído pelos artistas circenses que desfilavam pelas ruas divulgando seus espetáculos; depois quando fui tocado pelo teatro de rua que vi e fiz, que já tratei nos meus livros: Teatro de Atitudes e Teatro Determinado; por último a partir dos meus estudos sobre a pós-modernidade  em que pude entender que as mudanças sociais, econômicas e políticas proporcionaram o repensar do fazer artístico tendo em vista o repensar filosófico, científico, estético e cultural após a segunda guerra mundial, tema que trato no meu livro Amor invisível, romance fruto da minha tese de doutorado.

    A opção de trabalhar com teatro de rua foi influência, aparentemente inconsciente, da concepção de que meu trabalho poderia ser acessível a todas as camadas sociais. Anos depois compreendi que já estava pensando pela ótica pós-moderna da arte livre, aberta, acessível. Claro que essa compreensão foi fruto das leituras, no doutorado, sobre pós-modernidade.

    Caminhar pelas ruas de Barcelona, na Espanha, é um espetáculo único. Descrever os encantos daquela cidade é redundância pura! Nos meus estudos doutorais, em Barcelona, agucei meus sentidos, dentre eles o olhar; foi aí que descobri Igor Mitoraj, em 2007, motivo desse artigo fruto de emoções vividas que precisam ser divididas.

Foto: Carlos Cartaxo


    Igor Mitoraj foi um escultor, (Oederan, 1944 - Paris, 2014), cuja obra lembra a grandiosidade da arte grega; não obstante os traços clássicos, seu trabalho nos remete às mudanças e contradições do século XX, o que o enquadra no contexto da condição pós-modernidade. Quando ele nasceu a cidade de Oederan ficava na Polônia, o que o torna polonês; todavia, hoje a cidade se situa na Alemanha. Mas, independente do seu berço, sua obra é universal.

Foto: Carlos Cartaxo


    São esculturas metálicas gigantes. Asas para soltar a imaginação, para ir além do chão; peças que se sobrepõe na Rambla de Catalunya, para admiração e deleite coletivo.

    O que dizer da sensação de passear em plena Rambla por entre obras representativas do movimento artístico contemporâneo e repletas de incógnitas? São corpos gigantes com janelas no coração e órgãos genitais expostos com naturalidade como foi na Grécia Antiga e em Roma há alguns séculos. 

    É uma experiência ímpar porque nos alimenta de sensações e emoções. É a agradável oportunidade de admirar as obras do escultor tendo como cenário a arquitetura moderna na capital da Catalunha. 


Foto: Carlos Cartaxo


    A arte de Igor Mitoraj, em plena rua, está em constante mudança porque cada pessoa a interpreta à sua maneira; a face metálica entra no jogo de luz e sombra e compõe quadros diversos com inúmeras leituras. Inclusive, permite a interação e inclusão do apreciador. A sombra da árvore é um complemento; à arquitetura de fundo é a moldura flexível que nunca será estática. É uma composição natural e individual, somatório entre arte, ser humano, cenário natural e contexto.

    Se a obra está de olhos fechados ou sem cabeça é apenas um detalhe; na concepção do criador, o importante é que o leitor tenha olhos abertos e cabeça para complementar a escultura e suas nuances figurativas. 


Foto: Carlos Cartaxo


    A grandiosidade material da obra acompanha o esplendor da criação do artista. O olhar de um observador ver traços rasgos, fissuras, marcas expostas que podem estar no coração ou no inconsciente de cada leitor. São pedaços, volumes, corpos incompletos como todos nós somos, trabalhados pelo tempo e pelas situações contextuais cotidianas. Dependendo do estado de espírito, se encontra tristeza, coragem, rebeldia, dentre inúmeros sentimentos na expressividade das obras. O tamanho das esculturas nos faz, comparativamente, pequenos; não obstante grande quando estimulado a consciência e o coração. 


Foto: Carlos Cartaxo


    As obras de Mitoraj dialogam entre si e com o leitor. Felizmente Barcelona, Espanha, é uma cidade do circuito europeu que expõe sem censura obras cujas dimensões extrapolam os conceitos conservadores e a ausência de conhecimento sobre arte. Na Catalunha a arte pulsa e faz de Barcelona uma cidade, um campo aberto (e fechado em galerias e museus) que faz do povo catalão uma comunidade culta e dos visitantes mergulhadores no universo da sensibilidade através da arte.


Referências


Aguiar, Flávio; Arantes, Otília. O Olhar, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

Cartaxo, Carlos. O amor invisĩvel. João Pessoa, Editora CCTA, 2015.

Cartaxo, Carlos. Teatro Determinado. João Pessoa, Sal da Terra, 2009.

Cartaxo, Carlos. Teatro de Atitudes. João Pessoa, Sal da Terra, 2005.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

O museu de volta para o futuro

                                                        O museu de volta para o futuro


Carlos Cartaxo


A atividade acadêmica de doutoramento é um patamar difícil que exige muita energia e recursos financeiros; mas, necessário na formação de um professor pesquisador. Pois bem, como profissional da educação, a pós-graduação foi uma das metas no meu projeto de vida. O meu doutorado foi na Escola de Belas Artes da Universidade de Barcelona - UB, Espanha. Para cursá-lo tive algumas dificuldades, por exemplo, a UB é pública, porém, paga, o que exigiu recursos extras porque cursei o doutorado sem bolsa de estudo. Outra dificuldade foi o fato do idioma da UB ser o catalão. Em vários momentos precisei me comunicar em catalão; outras em espanhol; outras em inglês. As atividades curriculares também exigiam leituras em vários idiomas que eu não tinha domínio. Os obstáculos foram muitos, o que exigiu muito esforço para a produção de artigos; e o resultado foi a produção de um romance como tese e o sucesso do doutoramento con laude acadêmica.

 

Museu de Arte Contemporânea de Barcelona. Foto: Carlos Cartaxo


Dentre os artigos gerados no processo de trabalho, no doutorado, há um que merece um debate permanente; me refiro ao artigo “O museu de volta para o futuro” publicado na revista Conceitos. Embora o ideal seja ler o artigo por completo, Abaixo transcrevo fragmentos dessa escrita para reavivar a importância de uma política cultural comprometida com a arte, a ciência e a história.

“A minha primeira ida a um museu foi na infância. Conheci o “meu” primeiro museu na cidade de Picuí no Seridó paraibano. Infelizmente esse museu já não existe mais, porém lembro perfeitamente a fachada do prédio e as peças do acervo. Tendo essa boa recordação como parte do panorama formador da minha cultura e, certamente, de muitas outras pessoas, me pergunto por que será que esse museu foi fechado? Como consequência de uma possível resposta, surge outra questão: por que os museus paraibanos são tão pouco frequentados? 

Diante dessas dúvidas me surge uma proposta, aparentemente absurda, que beira ao surrealismo, mas que deveria ser comum, por exemplo, convidarmos alguém para visitar, passear ou até namorar em um museu, já que este é um espaço que suscita reflexões, comentários, discussões e admiração. Essa visão nostálgica me faz ver o museu como um lugar de encontros e despedidas. Encontro porque lá se encontra o passado e, em alguns, o presente. Despedida porque de lá podemos sair para o futuro.

João Pessoa por ser uma cidade com um pouco mais de quatro séculos, tem história que comporta um museu etnográfico, um museu sacro, um museu de arte contemporânea, um museu de arte popular, um museu da criança, um museu da música, um museu de artes cênicas, enfim, diferentes tipos de museus que podem e devem traduzir a trajetória social, política e cultural do/as paraibano/as e das pessoas que aqui fizeram e fazem história. Não obstante essa condição favorável, como se explica a terceira cidade mais antiga do Brasil não ter um museu? Vou mais longe, não ter uma política cultural, concreta e eficaz, voltada para o seu patrimônio histórico?

Contrariamente a essa realidade, em muitas das grandes cidades do mundo, parte do turismo se sustenta em função dos museus que lá existem. Esses museus não são armazéns que estocam objetos. A sua essência não está nas peças existentes. Eles são espaços culturais que conservam memórias e organizam significados de alguma forma sensorial. Essas cidades se preocupam e investem no que se chama museologia sensorial. Essa leitura de museu, de alguma forma, se aproxima da pós-modernidade, pela referência que tem quanto à questão de classe social, raça, gênero e políticas de correções e revisões (Padró, 2004.). Essa visão conceitual que está sempre passando por revisão, faz dos museus um ambiente de prazer, de descobertas e de aprendizagem. 

Como consequência dessa nova compreensão de gestão museológica, essas instituições se tornam auto-sustentáveis economicamente, chegando ao ponto de se formarem filas enormes para se acessar esses prédios monumentais, patrimônio da nossa história cultural. Devido à adequada importância que se fomenta nessas células culturais, alguns museus, no contexto de análises econômicas, chegam a ter mais importância turística que cultural. Apesar dessa leitura museológica, quando pensamos em museu devemos também pensar em um discurso museológico e como este se tornará acessível a um público amplo. Esse pensamento resulta em um trabalho profundo, dinâmico e crítico, que parte de uma política museística clara, objetiva e bem definida.


Compreendendo o papel do museu


Os museus, por muito tempo, foram considerados depósitos de coisas velhas, assim como chegaram a ser sinônimo de passado. Inspirado no filme De volta para o futuro, de Steven Spilberg, hoje, compreendemos que o museu tem novos conceitos que o coloca de volta para o futuro, ou seja, se alicerça na história do passado, percebendo o presente, mas com um foco no futuro. 

Por muitos anos a aristocracia e, posteriormente, a burguesia fizeram dos museus espaços exibicionistas de suas conquistas e seu poder. A modernidade deu continuidade a essa política, abriu os museus ao público e passou a cobrar entrada, capitalizando essas instituições culturais, tornando-as, em muitos casos, em verdadeiras fontes de lucro. 

O conceito de museu é plural e dinâmico, por isso tem sofrido mudanças a partir de estudos que definem e redefinem os fatores inerentes à estrutura e funcionamento desses espaços. Essa visão tem acontecido porque os espaços museológicos estão sendo repensados cotidianamente de forma intensa, o que os tornam instituições que oferecem infinitas possibilidades, dentre elas o direcionamento à educação e, em especial, ao ensino de arte.

Os estudos museológicos têm se desenvolvido em várias áreas de conhecimento. Não obstante essa amplitude, enfatizamos aqui apenas dois olhares: o econômico, que é aquele que torna o museu uma instituição moderna com base em uma economia de mercado; e o humanista, em que o museu é uma célula cultural essencial à formação do ser humano. O primeiro tem como foco a conservação de sua coleção de obra de arte e abre a porta à espera do público. O segundo se volta para o público e abre a porta para ir ao encontro deste. 

Diante de uma análise e com base nos dois enfoques citados, chega-se a ilação de que na cidade de João Pessoa não há museus. As instituições culturais que existem na capital paraibana com perfil de museu são: o Centro Cultural São Francisco, o Museu José Lins do Rego (que de fato é um memorial), a Pinacoteca da Universidade Federal da Paraíba (inoperante), a Fundação Casa de José Américo de Almeida (memorial), O Museu de fotografia Walfredo Rodriguez (galeria) e o acervo tímido, mas importantíssimo, do Núcleo de Pesquisa Popular da UFPB – NUPPO (inoperante). Todas essas instituições têm o perfil que se enquadra como museu, pois nos seus acervos têm peças e obras importantes, entretanto, partindo-se de uma análise crítica, elas não correspondem à realidade do que podemos entender como sendo um museu ou do que se propõe ser um museu.


Centro Cultural São Francisco. Foto Carlos Cartaxo


Essa compreensão está baseada no fato de que não há, nessas instituições citadas, uma prática, concomitante a um discurso contextualizado, que seja facilitadora do entorno do seu acervo. As peças estão expostas como se fossem desgarradas no tempo e no espaço. Isso se deve a falta de uma política museística gerida por profissionais qualificados na área e por falta de ações como: pesquisa, visitas pedagógicas, visitas teatralizadas, visitas de grupos, incluindo visitas para famílias, terceira idade, adolescentes e infantis, oficinas, conferências, mesas redondas e jornadas noturnas, dentre outras atividades possíveis. 

Após essa análise, resta-nos colocar as instituições museísticas pessoenses em um patamar distante do que deve ser de fato um museu. Se partirmos para manter essas instituições culturais como sendo museu, temos que enquadrá-las na concepção formalista de museu (Padró, 2004), cuja base é a gestão amadora e conservadora com ênfase no patrimônio. Além da gestão não profissional, esses museus têm uma concepção tradicional. Logo, para que estes funcionem eficientemente cumprindo suas funções museísticas devem sofrer uma ruptura radical e crítica, ao ponto de não se isolarem, tornando-se ilhas perante os acontecimentos sociais, culturais e educativos.”

Hoje, o quadro de instituições museísticas é outro; além dos já citados, listamos o Museu da Cidade de João Pessoa, Museu Casa de Cultura Hermano José, Museu do Artesanato Paraibano, Museu e Cripta de Epitácio Pessoa, Museu da Polícia Militar, Museu de Esculturas Jurandir Maciel e Museu de História Natural da Bica. Muitas dessas instituições não têm o impacto cultural e social pela simples ilação de que há necessidade de uma política cultural voltada para essas instituições aguerridas.



Referências


PADRÓ, Carla. Historias de museos, historias de prácticas educativas. In V Jornada d´història de l´educació artística. Barcelona: Facultat de Belles arts, universitat de Barcelona, 2004. 

Revista Conceitos. ADUFPB. ISSN 1519-7204.Ano IX. N 16, julho 2011. p26. https://www.adufpb.org.br/site/wp-content/uploads/2011/11/REVISTA-CONCEITOS-16.pdf