Sociedade evoluída e leitura
CARTA ABERTA DE AMOR AOS LIVROS,
Universo do professor de arte e escritor Carlos Cartaxo
Sociedade evoluída e leitura
CARTA ABERTA DE AMOR AOS LIVROS,
Seu Abílio
Carlos Cartaxo
Há quem diga que não existe unanimidade. Mas seu Abílio era o que se pode chamar de unanimidade. Não era por acaso que ele respondia como o representante jurídico da cidade, sem nunca ter cursado uma faculdade. Senhor de cabelos grisalhos, altura mediana, simpático e educado, mas de uma seriedade cuja palavra ninguém ousava duvidar. Sua eloquência, fruto de um bom nível cultural, o fazia o principal orador, na verdade o orador oficial da cidade de Picuí, no Seridó Oriental paraibano.
Foi professor de Português, de um colégio estadual, por muitos anos. O tempo passou e, mesmo depois de aposentado,continuou sendo a enciclopédia ambulante; o referencial mediador para as grandes celeumas intelectuais; o apoio para a realização de todas as gincanas e atividades culturais do Grupo Escolar Professor Lordão. Por muitos anos, foi a memória viva da cidade.
Como era um leitor ávido, as mães sempre o procurava para prescrever o nome dos recém-nascidos. Os nomes clássicos, oriundos da literatura universal, todos já sabiam que era sugestão de seu Abílio. E tem mais, a escolha não era aleatória. O nome da criança tinha uma relação com o histórico dos pais. Se o pai era bom de bola, o nome era Amarildo, Edson, etc. Quando era eletricista ou tinha uma profissão técnica, era Thomas, Santos Dumont, Leonardo. Se a mãe era enfermeira, era Ana Neri, Florence Nightingale. Isso fez com que uma geração inteira tivesse nomes que diferenciavam a cidade do seu entorno geográfico. A função de nomeador lhe deu notoriedade. Os jovens também se sentiam lisonjeados. É tanto que havia concorrência, mesmo implícita, para saber de quem era o nome mais bonito, mais significativo. Desde criança, todos sabiam a origem e o significado do seu nome.
Pela notoriedade, ele também tinha uma gama de afilhados. Afinal, ter seu Abílio como compadre era sinônimo de reconhecimento social. Inclusive, um estímulo ao filho para seguir o exemplo do padrinho. Dessa maneira, ele passou a ser um ícone, o cidadão mais reverenciado da cidade, mesmo sem nunca ter ocupado um cargo executivo ou legislativo.
Como pai, escolheu o nome mais justo e simbólico para seu filho: Jesus. Garoto alvo como um anjo. Educou-o, como se fosse um lorde inglês, para seguir uma educação rigorosa e tradicional. Como consequência, Jesus gostava muito de ler. Na escola não era destaque nota dez, mas sempre acompanhava os conteúdos com bastante afinco e tinha bom desempenho, para orgulho do pai.
Seu Abílio fazia questão de que Jesus participasse de todas as manifestações culturais da cidade. Era na quadrilha junina, na comemoração do Sete de Setembro ou no bloco de carnaval. Ele, com seus amiguinhos, participavam do movimento cultural, de passeios ciclísticos e viviam uma infância feliz.
Claro que uma das primeiras bicicletas a desfilar pelas ruas de Picuí foi a de Jesus. Era simplesmente linda! A cidade parava para vê-lo deslizar pelas vias calçadas ou de barro, rua a baixo, rua acima. Espelhados no presente de Jesus, a garotada vivia no pé do ouvido dos pais querendo uma bicicleta também. O que não deu outra, poucos meses depois, a turma das bicicletas desbravava a cidade de ponta a ponta.
Apesar de toda educação recebida e dos cuidados de seu Abílio, Jesus foi crescendo e se tornando muito independente, o que começou a ser motivo de preocupação. Chegou à adolescência; o momento de muita cautela no que concerne àeducação. Certo domingo, Jesus demorou muito para ir almoçar. A delonga causou um desconforto no pai, que o esperava na esquina da rua, suado e impaciente. O alívio veio quando a bicicleta apontou na outra esquina. Seu Abílio foi recebê-lo e, em um relance, sentiu cheiro de álcool. Fez-se de desentendido, mas depois do almoço levou Jesus para um quarto e fez uma sabatina. O filho prometeu que nunca mais iria beber cachaça.
De fato, por muito tempo Jesus se comportou como um garoto adolescente de excelente conduta. Álcool, jamais! Passou Natal e Ano Novo, e Jesus só tomava gasosa. Embora haja quem diga que à noite, escondido com os amigos, Jesus andava tomando vinho, algo muito leve, digamos suave, nada comprometedor. Dessa forma, Jesus estava ganhando pontos para que o prometido ao pai fosse cumprido, logo recompensado,ganhando as férias na capital do Rio Grande do Norte, desfrutando do tão sonhado banho de mar.
O acordo foi para Jesus só viajar depois dos festejos do carnaval. Nesse tipo de evento, que possibilitava uma perniciosa liberdade, segundo seu Abílio, o mesmo tinha que estar às vistas do pai. A viagem de férias já estava sendo programada, assim como a participação nos blocos carnavalescos dos jovens adolescentes da cidade.
O carnaval era bem organizado, havia corso com blocos de rua e blocos para o carnaval da sociedade no clube. Os papangus animavam as ruas. Havia certo investimento das famílias na participação dos filhos porque era, geralmente, quatro dias de folia, quando a cidade participava de forma efetiva, independentemente de classe social, fosse na rua ou no clube.
O sábado era o dia de feira na cidade. Mesmo assim, a folia começava cedo com os desocupados e os papangus tomando cachaça e brincando com farinha de trigo ou maisena e água. O desfile oficial de rua só iniciava às 16 horas. A cidade parava. A criançada e os jovens desfilavam em cima de jipes e camionetas com batucadas. Cada bloco esbanjava, como numa competição, a beleza da sua fantasia. Muito talco, farinha de trigo, água e alegria. Eram Reis, Rainhas, Zorros, índios, piratas... uma gama enorme de personagens a alegrar as ruas da cidade.
No domingo, a festa começava mais cedo. Às dez horas da manhã, já havia folia nas ruas. E Jesus, como bom folião adolescente, vestido com bermuda colorida, blusa listra e boné branco pegou sua bicicleta e desapareceu pelas ruas da cidade. Subia e descia ladeira sem demonstrar um pingo de cansaço.Acompanhava um bloco aqui outra acolá juntamente com um grupo de amigos ciclistas. Ao meio dia, o jovem, que tinha esquecido o tempo, ainda não havia aparecido para almoçar, o que deixou seu pai deveras preocupado. Em casa, seu Abílio, impaciente, caminhava de dentro para fora e, a cada cinco minutos, ia à janela. À uma hora da tarde, com o almoço ainda posto à mesa, ele não resistiu e foi à procura do filho. Foi àfarmácia do compadre Severino Fernandes e não obteve notícias de Jesus. Foi à sinuca e ninguém sabia do paradeiro do garoto. Ofegante, cruzou a rua e foi à delegacia. Lá encontrou o cabo Anselmo cochilando, sem coturnos, só de meias, com os pés em cima da mesa. Ao acordar e se deparar com seu Abílio, se recompôs, pediu desculpas e prontamente se dispôs a sair à procura do bom menino. Desesperado, saiu perguntando a um e a outro sobre o paradeiro de Jesus. A cidade inteira já estava sabendo do sumiço do adolescente. Por volta das duas horas da tarde, seu Abílio, no extremo da preocupação, suado e transtornado, encontrou Chico Cândido, membro espirituoso da filarmônica municipal, e foi logo fazendo a pergunta que todos já conheciam:
— Chico, você viu Jesus?
Sem pressa e sem se preocupar com o que dizia, Chico Cândido subiu a calça. Pensativo, continuou ajeitando os botões da camisa, como quem quer se apresentar decentemente para aquele respeitável homem. Reposicionou o suado chapéu na cabeça. Viu, pelo semblante, que aquele senhor estava deveras nervoso, no limite de sua paciência. Mirou seu Abílio no olho e, de forma didática, com a calma e a paciência que lhe era peculiarrespondeu:
— Seu Abílio, Jesus não aparece na Semana Santa, imagine
no carnaval.
Conto publicado no livro Contatos, de 2014, p. 11 - 15.
Referência:
CARTAXO, Carlos. Contatos. João Pessoa, Editra do CCTA, 2014.
Prêmios literários e seus dissabores
Carlos Cartaxo
Falar de prêmios literários é falar de política cultural. É redundante escrever sobre política cultural e suas implicações positivas no seio de uma sociedade; assim como é pleonástico enfatizar a importância de uma política cultural virtuosa para o movimento artístico e, em especial, para o/as artistas. Os conceitos existentes sobre política cultural variam de acordo com a abordagem e com o referencial teórico de quem fundamenta; contudo. cito aqui o artigo Mais definições em trânsito: política cultural, quando afirma que “Políticas culturais são formulações e/ou propostas desenvolvidas pela administração pública, organizações não-governamentais e empresas privadas, com o objetivo de promover intervenções na sociedade através da cultura” (Félix e Fernandes, Cult, s/d) porque representa bem o que tratado aqui nesse artigo.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, o movimento cultural brasileiro teve um grande impulso com a gestão democrática do Ministério da Cultura nos dois primeiros governos Lula, PT, e no governo Dilma, PT. As leis de incentivo à cultura foram determinantes para a produção e a veiculação do que se produzia na área artística e cultural; ao mesmo tempo que impulsionou o trabalho de organizações não governamentais, empresas e produtores individuais .
O ato de criar é parte essencial da condição humana. Há teorias em várias áreas do conhecimento quanto ao papel do ser criador na sociedade. Um bom parâmetro para se majorar a produção criativa em uma sociedade é identificar o estímulo que gestores e o conjunto da sociedade dão ao processo criativo e ao criador porque daí surgem criaturas com conhecimento, sensibilidade, respeito ao próximo e visão plural do mundo e, principalmente, do seu entorno.
Apesar de ser a terra de Camões, Fernando Pessoa e Saramago, dentre muitos criadores significativos da literatura, me reporto aqui não só aos criadores, mas, a política cultural gerida que faz de Portugal um país expressivo no mundo da arte e, particularmente, na literatura. Por exemplo: vejamos alguns editais de 2023 publicados por lá.
O Prêmio Literário Joaquim Mestre, promovido pela ASSESTA - Associação de Escritores do Alentejo, que premia o vencedor com € 3.000,00 (três mil euros); algo em torno de R$ 16.000,00 (dezesseis mil reais).
Prêmio Literário Alves Redol, 9° edição,promovido pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, nas modalidades literárias de conto e romance. O prêmio para contos é de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), algo em torno de, R$ 14.000,00 (quatorze mil reais).
Prêmio Literário Luís Miguel Rocha, 3° edição, da Câmara Municipal de Viana do Castelo. O prêmio será de € 6.000,00 (seis mil euros), aproximadamente R$ 33.000,00 (trinta e três mil reais).
Prêmio Res Pública, da Fundação Res Publica, 5° edição,cujo tema este ano é “Políticas Públicas num futuro e num contexto de Alterações Climáticas”, tem o valor de um valor de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), aproximadamente R$ 14.000,00 (quatorze mil reais)e € 1.500 (um mil e quinhentos euros), em torno de R$ 8.000,00 (oito mil reais), a atribuir ao autor ou autores dos ensaios vencedores do primeiro e segundo prêmios, respetivamente, e um valor de € 1.000, em torno de R$ 5.500,00 (cinco mil e quinhentos reais), a atribuir ao autor vencedor do Prêmio Jovem (para autores nascidos depois de 2002).
Prêmio Literário Santos Stockler do Município de Lagoa. O prêmio será de € 10.000,00 (dez mil euros), em torno de R$ 55.000,00 (cinquenta e cinco mil reais).
Esses prêmios citados são apenas uma pequena fração dos prêmios que são publicados em Portugal com o fim de valorizar a língua portuguesa, promover e enaltecer a identidade daquele povo, assim como a diversidade sócio cultural dos leitores e dos artistas; ao mesmo tempo, estimular a criação literária, a propensão pela escrita e, naturalmente, pela leitura, desencadeando um potencial universo de apreciadores culturais.
Voltando para casa; sentado à poeira da aridez, mesmo no verdejante inverno do sertão e se deliciando com a brisa do mar, vejo na Paraíba um panorama frágil e ineficiente quanto a política cultural no que concerne ao estímulo aos criadores e ao fomento aos leitores e apreciadores. Um estado que tem uma lista enorme de significativos artistas e uma produção cultural de projeção internacional, tem uma política cultural pífia. Para não dizerem que falo demais, vejam, por exemplo, o edital 008/2023, Prêmio Literário José Lins do Rego, do Governo do Estado da Paraíba, através da FUNESC - Fundação Espaço Cultural, e façam um paralelo com os editais de pequenas cidades de Portugal; vemos que no caso da Paraíba é um atentado ao criador da literatura paraibana. Os valores dos prêmios em Portugal humilham a premiação inexistente do concurso paraibano. Aqui o Edital reza que:
4 DA PREMIAÇÃO
4.1 No total, serão selecionadas para publicação em livro com os selos Edições Funesc e
Editora A União, 5 (cinco) obras, uma em cada categoria, conforme especificado a seguir:
4.1.1 Coleção Riacho Doce: Romance (1);
4.1.2 Coleção Gordos e Magros: Conto(1) e Crônica (1);
4.1.3 Coleção Pureza: Poesia (1);
4.1.4 Coleção Velha Totônia: Infantojuvenil (1);
4.2 As 5 (cinco) obras classificadas no PRÊMIO LITERÁRIO JOSÉ LINS DO REGO serão, após seleção pela FUNESC, editoradas e impressas na Gráfica A União.
4.3 Serão impressos 400 (quatrocentos) livros de cada categoria, no total de 2.000 (dois mil)
exemplares. Os candidatos (as) premiados (as) terão direito, cada um, a uma cota de 50
(cinquenta) exemplares de suas respectivas obras, a título de direitos autorais em forma
de produto, ficando a FUNESC e a Editora A União isentas de posterior pagamento por
direitos desta natureza.
4.4 O saldo remanescente de 1.750 (mil setecentos e cinquenta) exemplares dos cinco
títulos premiados serão de responsabilidade distributiva da FUNESC, através da
Biblioteca Pública Juarez da Gama Batista e da EPC, que dividirão o saldo de livros entre
si, na proporção de 150 (cento e cinquenta) exemplares de cada categoria para FUNESC
e 200 (duzentos) exemplares de cada categoria para EPC, a esta para fins de
comercialização.
A obra do autor premiado será publicada com 400 livros, ficando para o autor, como pagamento dos direitos autorais, 50 volumes, pouco mais de dez por cento; vejam que proporção é desleal para aquele que é o criador da obra. E tem mais, os direitos autorais ficam para os editores por cinco anos. E a premiação em dinheiro? Inexiste! Sério? Parece não ser sério; mas, é apenas absurdo! Sendo assim, entendo esse edital, da mesma forma a política cultural do estado da Paraíba, como sendo a usurpação da criatividade e do trabalho do autor.
Será que o trabalho de cinco anos de um autor merece o valor de uma, duas ou três diárias de um secretário de estado? Não, não vale é muito pouco! Dez dias de diárias do trabalho de um, jamais valerá cinco anos do trabalho do outro? É claro que essa analogia não cai bem. O trabalho de um secretário pode ser realizado por qualquer outro secretário; e o trabalho do escritor? Será que se meu computador quebrar e eu perder o capítulo de um livro, posso passar essa responsabilidade para outra pessoa reescrevê-lo? Alguém pode até tentar, mas jamais o fará mesmo! Então, a questão não é de comparação de ganhos, mas, de desvalorização, negação e não reconhecimento do trabalho do outro; é negar a grandeza que compõe o processo de criação; da elaboração de cenas e a complexidade de construção de um enredo, de uma ou várias personagens.
Contudo, não cabe aqui a teoria da queixa; mas, da crítica caee, sim. Cabe criticar a política cultural do Governo do Estado da Paraíba, da política cultural dos municípios e dos artistas que silenciam como se essa debilidade de gestão pública fosse normal e aceitável. É fato que o advento da pós-modernidade isolou os sujeitos; que nos olhamos mais no espelho do que no entorno social; que pensar no pŕoximo, por conseguinte, no coletivo é utopia; e que utopia era concepção da luta para derrubar a ditadura. Diante desse quadro faço um exercício hercúleo para não acreditar no que acabei de escrever; por isso, conclamo os criadores, leitores e apaixonados pela arte e cultura, para se posicionarem e exigirem uma política cultural do Governo do Estado da Paraíba e dos municípios que seja condizente com o que a sociedade paraibana necessita e merece, no que diz respeito a arte, a cultura, ao entretenimento e a socialização do saber.
Referências
https://www.cult.ufba.br/maisdefinicoes/POLITICACULTURAL.pdf Consultado em 31/08/2023 às 11h10.
https://culturaemercado.com.br/os-oito-anos-do-governo-lula-e-os-pontos-de-cultura/ Consultado em 31/08/2023 às 14h30.
http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/premios/PremiosaDecorrer/Paginas/PremiosaConcurso.aspx Consultado em 31/08/2023 às 18h30.O aluno R
Carlos Cartaxo
Os resultados, quantitativos e qualitativos, da escola brasileira são desafios que parecem sem fim. Minha trajetória como profissional do ensino de arte e da comunicação tem conduzido meu olhar para essa questão paradigmática. Pode parecer redundante a expressão questão paradigmática, afinal toda questão traz em si um paradigma; mas, não é bem assim; algumas dúvidas vão além de uma simples pergunta e, por isso, precisam de um tratamento acadêmico; um estudo profundo que seja muita mais que apenas uma resposta baseada no achismo. E, o caso do aluno R é um caso de perquirição que me faz reunir meus conhecimentos da comunicação com os da pedagogia da arte. Nesse sentido recorro ao livro “O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média”, de minha autoria, para escrever esse artigo.
A história, através dos inúmeros artigos e livros publicados, nos mostra que os problemas das escolas brasileiras são complexos porque fazem parte de incontáveis fatores que vão da falta de recursos, aos recursos mal aplicados, até péssimas condições de trabalho, além das questões eminentemente pedagógicas.
É elementar saber que todo processo comunicativo se dá através de um emissor, da mensagem, e um receptor. Esse conceito deveria fazer parte da formação docente e, se tratando de ensino de arte, é, até óbvia essa necessidade, porque trata-se de ensinar o que é subjetivo. Embora toda expressão artística traga em si uma leitura conotativa, quando se trata de aprendizagem, faz-se necessária uma abordagem também denotativa. Nesse sentido, vou buscar no último capítulo do livro “O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média”, A experiência do NPI, uma resposta para o conteúdo deste artigo.
A experiência do NPI foi um caso por mim vivenciado quando era professor de arte no Núcleo Pedagógico Integrado, da Universidade Federal do Pará, na última década do século XX. Parece que faz muito tempo, contudo, a experiência narrada no livro citado, faz-se presente em muitas escolas hoje. Por isso, transcrevo aqui como fonte de reflexão crítica e analítica dos baixos índices da escola brasileira.
Em muitos casos, o ensino de arte é tratado apenas pela ótica do fazer artístico; o pedagógico fica em segundo ou até último plano. Essa lacuna quebra o processo comunicativo da emissão qualificada da mensagem do emissor, o professor, para o receptor, o aluno. Inclusive a tríade, aluno, professor e escola não se efetiva e, até a família fica de fora. No caso da tríade citada, a escola é representada pelos serviços técnicos: pedagogos, psicopedagogos, psicólogos e assistentes sociais.
Toda escola deveria ter a estrutura técnica do NPI/UFPA; lá o ensino de arte trabalhava, imagino que hoje ainda trabalha, “em conjunto com os serviços técnicos, de forma que pudesse haver acompanhamento e evolução no processo de ensino-aprendizagem através da arte. De maneira, que quando são diagnosticados distúrbios no processo educativo, além do professor e do aluno, a constatação passa também pelos serviços técnicos. Com essas condições de trabalho e a estrutura para um bom acompanhamento e evolução do aluno e do professor, o trabalho com as artes cênicas, em sala de aula, foi responsável pela solução de um distúrbio escolar, que através de jogos dramáticos e do teatro, foi localizada a causa e consequentemente estudada. sendo iniciado o processo de solução, ou seja, um trabalho dirigido em sala de aula, em casa e um acompanhamento sistemático pelo setor técnico, o que resultou em amenizar o desvio que o distúrbio provocava penalizando o aluno R” (CARTAXO, 2001, p. 189).
”No início do ano letivo, a primeira aula, geralmente, era de apresentação e de definição do papel e do conteúdo da disciplina, concomitantemente com o papel do aluno e do professor no contexto do processo pedagógico da escola” (CARTAXO, 2001, p. 190). O programa da disciplina iniciava com atividades lúdicas para entrosar os alunos entre si e facilitar a liberação comportamental da turma; assim evitava o surgimento de pequenos grupos. A atividade programática seguinte foram jogos dramáticos.
O processo de realização dos jogos dramáticos consistia de: 1) Cada discente escolhia um assunto de seu interesse; 2) agrupa-se os temas que têm relação entre si; 3) formam-se grupos por afinidade de conteúdo; ressalta-se que “a formação de grupos por alunos, cujos temas têm uma relação entre si, é importante porque o trabalho se desenvolve a partir da preocupação e visão que os mesmo têm do mundo, rompendo o mau hábito de que só se trabalha bem se for com o melhor amigo” (CARTAXO, 2001, p. 190); 4) após os grupos constituídos, se realizaram os jogos dramáticos, direcionados a ideia central de cada grupo constituído (capítulo II do livro citado); 5) Em seguida, cada grupo criou a sua própria história, a partir de relatos contados ou criados, algumas mescladas, e selecionadas. “como surgem mais de uma ideia, nem sempre há consenso no grupo, o que acarreta discussão, que é salutar; mas, que deve ser bem orientada pelo professor para evitar conflitos pessoais, dispersão do grupo e tempo desperdiçado nessa fase que é a base do trabalho” (CARTAXO, 2001, p. 190). Foi nessa fase que surgiu o conflito com o aluno R.
Em um determinado grupo, cada aluno sugeriu uma história e o grupo selecionou a que mais impressionou; esse método é um trabalho pedagógico de introduzir a capacidade analítica, crítica e seletiva de cada um. Nesse grupo a história escolhida foi de uma aluna tímida; contudo, o aluno R, membro do grupo, não gostou da escolha e se sentiu rejeitado; daí “partiu para a violência; pegou o trabalho de inglês da aluna, que estava, próximo, e rasgou; a aluna reagiu chorando baixinho, cabisbaixa na carteira. A turma, conhecendo as reações inesperadas do aluno R, comunicou ao professor que aquele aluno tinha, às vezes, um comportamento estranho” (CARTAXO, 2001, p. 190).
Esse fato ocorrido em sala de aula diagnostica o que a psicologia define como sendo um distúrbio de escolaridade, ou seja, falta de sociabilidade e indisciplina recidivante (PAWEL, 1992).
O professor afirmou que iria falar com a professora de inglês comunicando-a do incidente com a aluna. “Uma psicóloga e uma pedagoga, que vinham acompanhando o aluno R desde séries anteriores, informaram que o mesmo tinha agredido e desafiado professores em outras situações semelhantes” (CARTAXO, 2001, p. 192). Informado sobre a situação do aluno R, o professor compreendeu que estava diante de um distúrbio escolar.
Na estratégia metodológica adotada pelo professor, as aulas de arte continuaram com os grupos na criação das histórias selecionadas. O aluno R se isolou, não quis participar de algum grupo e o professor concordou com a escolha dele. O docente deixou o aluno livre, não exigindo atividades escolares. Os grupos continuaram trabalhando com atividades lúdicas e jogos dramáticos direcionados às histórias que estavam sendo criadas. O professor percebeu que o aluno R estava olhando discretamente as atividades desenvolvidas em sala de aula. O estudo comportamental do professor e da equipe técnica diagnosticou que o aluno R se sentiu rejeitado pelo processo de aprendizagem.
“Quando um aluno tem um comportamento que exige atenção como se fosse o dono da verdade, querendo ser o centro das atenções é porque ele se sente rejeitado, na família ou na escola,e como forma de compensar, ele age querendo para si todas as atenções possíveis” (CARTAXO, 2001, p. 1923). Partindo do princípio comportamental sobre a rejeição, o papel do professor foi inverter esse quadro. A estratégia foi a aproximação, paulatina, do aluno, fazendo com que este visse que o seu lugar estava reservado na turma. Nesse ponto do processo foi importante colocar o respeito ao próximo como uma condição de equilíbrio e aceitação. Essas ações estimulam a autoestima do aluno e nunca devem penalizá-lo, como se este tivesse um comportamento fora do padrão porque ele mesmo quer. Nessa fase o professor se aproximou do aluno R para enaltecer suas qualidades. R foi adquirindo confiança e se aproximando do professor até o dia em que um grupo ficou impossibilitado de ensaiar porque faltou um componente. R foi convidado pelo professor para substituir o aluno ausente, ele resistiu e não demonstrou interesse em participar do grupo, mesmo que fosse apenas por um dia. O professor conversou com um membro do grupo, que tinha uma boa relação com R, para convidá-lo a participar naquele dia; o professor foi acompanhar o trabalho dos outros grupos. Com o convite, poucos minutos depois, R já estava agrupado participando da atividade; o pequeno texto que em três aulas não havia sido decorado pelo colega ausente, R decorou naquela única aula. A volta do aluno titular da personagem deixou R fora do grupo. O aluno R voltou a ficar isolado na sala. O professor procurou saber o porquê. O aluno R disse que não queria voltar a atuar. O professor continuou a trabalhar, sutilmente, a autoestima de R enaltecendo sua criatividade, seu talento e o seu desempenho naquele único dia em que ele atuou no grupo. O professor procurou o grupo para que este o convidasse para reintegrar o trabalho. O aluno demonstrou interesse, mas o texto teatral já estava escrito e não havia mais personagens para serem interpretadas; foi sugerido criar uma nova personagem na história. Pela característica de sua personalidade, R aceitou interpretar um leão; pelo bloqueio do distúrbio escolar, ele preferiu usar máscara; ensaiaram e a apresentação foi um sucesso. O trabalho teve um resultado tão bom que, além de apresentarem no NPI, foram convidados para se apresentarem fora da escola.
O corpo técnico e os pais de R ficaram entusiasmados com o desempenho do aluno. A experiência demonstrou que R começou a participar de atividades lúdicas, jogos dramáticos e fazer teatro na escola; o seu desempenho evoluiu em todas as disciplinas e na sua relação com os colegas e professores; sua agressividade diminuiu; ele tornou-se mais espontâneo e passou a respeitar os membros da escola como parceiros de uma mesma comunidade.
Esse foi um caso concreto de distúrbio escolar em que, através do ensino da arte, se trouxe o discente para o seu meio sem ações equivocadas de punição, mas ao contrário, estimulando suas qualidades e demonstrando a potencialidade que todo aluno tem. É certo que a escola não é a panaceia para distúrbio escolar, de maneira que é fundamental a participação da família e tratamento especializado no processo corretivo de ajuda.
Com os resultados obtidos e a continuidade do trabalho na escola e com atenção de um profissional da psicologia, nota-se que o distúrbio escolar pode ser, paulatinamente, corrigido. Como conclusão, afirma-se que diagnosticar os processos evolutivos da afetividade, percepção e cognição do aluno é uma condição para se tratar cada discente com respeito e atenção que ele precisa e merece para ter um bom desempenho escolar.
Referências
CARTAXO, Carlos. O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média. João Pessoa, 2001, edição do autor.
PAWEL, Claudio. Educação - Distúrbios escolares. Viver Psicologia, Cotia SP: n° 03, outubro/ 1992, p. 36 a 38.
A estética Totoniana
Carlos Cartaxo
Há quarenta anos, década de oitenta do século XX, eu fazia o curso de Educação Artística na UFPB quando tive a oportunidade de conhecer, estudar e trabalhar com Carlos Antonio Bezerra da Silva, o talentoso Totonho. Nesse período fui Tesoureiro, depois presidente da FPTA- Federação Paraibana de Teatro Amador. Nessa segunda gestão Totonho também fazia parte da diretoria; e, dentro do planejamento da entidade, eu visitava o Rio de Janeiro com certa frequência para participar de cursos, encontros de artes cênicas, visitas à Escola Nacional de Circo; período em que vi muitos espetáculos teatrais, nos mais diversos gêneros, e muitas vezes me hospedei na Casa Paschoal Carlos Magno no bairro Santa Tereza. Na volta à Parahyba sempre repassava as vivências e os projetos a serem implementados para a diretoria da FPTA. Em uma dessas idas ao Rio, eu tive a oportunidade de presenciar e vivenciar uma manifestação pelas eleições diretas; houve reação da polícia e uma dose violenta contra a manifestação pacífica e democrática. Eu sempre tive engajamento político desde a adolescência e participar daquele ato político, foi, para mim, um momento de aprendizagem e resistência; de modo consequente, ao retorna a Parahyba contei À diretoria da FPTA essa vivência política e vi os olhos de Totonho, que estava presente, um brilho de quem entendia e partilhava da luta pela democracia. Em seguida, dessa fase, Totonho arrumou a mala e foi morar no Rio de Janeiro com a missão de fazer um brilhante trabalho com crianças que viviam em condições de rua; deu continuidade aos estudos fazendo pós-graduação; criou e dirigiu a Organização Não Governamental “Projeto Ex-Cola”; ele atuou também no projeto OBA - Oficinas Básicas de Arte, que era ação cultural contra a violência e , por conseguinte, a sua vertente musical.
Esse final de semana tive a oportunidade de fazer uma imersão na obra musical de Totonho e, especificamente, pude apreciar, ouvir e decodificar, o álbum “Samba Luzia Gorda” de Totonho e os Cabra. De imediato, lembrei dos nossos estudos de estética Aristotélica na UFPB, na década de 80, século XX; não obstante, a estética formal dos conceitos Aristotélicos que fomos introduzidos, situei a estética Totoniana nos conceitos da pós-modernidade, contexto que vivemos nesse início de século XXI, terceiro milênio e que está bem localizada na obra do compositor e cantor aqui lembrado. A estética Totoniana trás consigo as bandeiras pós-modernas de: 1) ser uma obra aberta, disjuntiva e plural, contrariando o espaço disjuntivo e fechado da modernidade; 2) ter uma base na cultura popular; 3) transita entre estilos, ou seja, erudita pela criação rebuscada da literatura de Totonho; contemporânea pelo fato da pluralidade instrumental das composições.
Encontro da obra de Totonho a fala do meu personagem Rubens do meu romance “Amor invisível: artes e possibilidades narrativas” quando diz que:
一 A pós-modernidade é um beija-flor que voa ao passado para trazer o pólen que se junta aos problemas do presente, contextualizando o imbróglio do cotidiano 一 pulsando didaticamente 一 como, por exemplo, a contaminação do meio-ambiente, a discriminação racial e a igualdade de gênero. Essa junção de tratamentos ideológicos, culturais e sociais, desperta para uma ordem que provoca uma análise crítica e desencadeia atitudes construtivas, e colocando a sociedade defronte do tão sonhado progresso que a industrialização tanto propagou” (Cartaxo, 2015, p.363).
Na música “Tem mais igreja que supermercado” , Totonho coloca suas composições dentro de um parâmetro estético pós-moderno que possibilita a abertura do conteúdo além de uma abordagem apenas religiosa. Com essa composição, perfilo Totonho na categoria de artista ironista, aquele que extrapola, em muito, o enquadramento apenas romântico ou mesmo emocional. Inclusive, o instrumental da música citada, faz um hino que deveria ser abordado nas ruas, praças, mesas e até em igrejas.
A música Nhém, nhém, nhém é outra obra prima que demonstra sua relação com a igreja e sua transcendência cultural; afinal, seu ser foi batizado; em seguida, ele trafega pelo Tibete, passa pelo Zapatismo mexicano, deságua em uma aldeia Tabajara no litoral paraibano e vai pelo mundo à fora feito um cabra desenbestado; enfim a estética Totoniana é universal.
Nhém Nhém Nhém
(Totonho & Os cabra)
Desde que fui batizado
Minha alma amarelou
Minha pele era negra, desbotou
Hare Krishna em labareda
Pega teu kichute e dança, uma valsa
Felicites os Tibetanos, pela calma
O furor da inteligência
Fez a USA usar bem
Uma quenga zapatista
No alto de Suassuna
Toque sanfoneiro
Nessa pele de cordeiro
Beba esse chá de bússola
Feito por esse mestiço
Pelas ondas tabajaras
Ouço o rinchar das mulas
Um dia ainda te escrevo
De um banco de praça da cidade do Cabo Canaveral
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Nhém nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Hare Krishna em labareda
Pega teu kichute e dança, uma valsa
Felicites os Tibetanos, pela calma
O furor da inteligência
Fez a USA usar bem
Uma quenga zapatista
No alto de Suassuna
Toque sanfoneiro
Nessa pele de cordeiro
Beba esse chá de bússola
Feito por esse mestiço
Pelas ondas tabajaras
Ouço o rinchar das mulas
Um dia ainda te escrevo
De um banco de praça da cidade do Cabo Canaveral
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Nhém nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Consciente de minha afeição pela obra de Totonho como compositor, cantor e músico, me coloco na posição de suspeito, por tercer além do aqui escrito, um mergulho filosófico ou estético sobre a obra do egrégio artista; todavia me dou o direito de convidar a todo/as para mergulhar, com profundidade, no trabalho desse nobre cancioneiro paraibano. Como a estética Totoniana toca o âmago da minha sensibilidade; é possível que também lhe emocione tanto quanto faz comigo. Que assim seja, na igreja ou no palco que for!
Fonte:
Cartaxo, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa: Editora do CCTA, 2015.