Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Lições de Carolina Maria de Jesus

                                                 Lições de Carolina Maria de Jesus

Carlos Cartaxo

Resistir é preciso! Já faz um bom tempo em que eu reluto escrever sobre a fome porque o bom mesmo é escrever sobre coisas boas e a fome não se encaixa nesse escopo do que é magnânimo. Mas, minha determinação por lutar por uma vida digna, justa e igualitária para todos, alimentou minha resistência e me deu coragem para escrever sobre o livro Quarto de despejo, livro de Carolina Maria de Jesus, cuja primeira edição data de 1960. A lógica nos diz ser um livro antigo sobre favela e pobreza; mas, como não existe antiguidade na arte, me dou o prazer de escrever sobre essa preta, favelada, que mesmo quando não tinha o que comer se denominava poetisa e escritora.

Eu passei dias me perguntando como era que eu não conhecia o livro “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus e sua obra na totalidade. Mas, como o tempo é senhor do destino, chegou o momento de conhecê-la e partilhar com meus leitores as impressões dela como escritora, pobre, favelada, de conviver cotidianamente com a miséria. Quando conheci os “Miseráveis” de Vitor Hugo fiquei chocado e, em simultâneo, encantado com a humanidade daquela obra de arte; com Carolina de Jesus fui além, fiquei inebriado com tanto talento, conhecimento e sensibilidade. Essa enxurrada de sensações me fez publicar esse artigo para soltar ao vento toda impressão que trago da literatura dessa mulher guerreira e brilhante.

Foto: IMS Paulista, Internet.

A opção é evitar um tratado literário sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, até porque já existem excelentes artigos sobre o tema; mas, fazer uma viagem afetiva e emotiva sobre as passagens que o livro impactou em mim. Em 1958, quando Carolina escrevia seu livro na metrópole paulista, minha mãe e meu pai saíram da Paraíba para irem ganhar a vida em são Paulo. Fui gerado lá e meus pais retornaram à Paraíba, em 1959, de onde vim nascer em Picuí. Só agora encontrei uma real relação entre a obra e vida de Carolina Maria de Jesus e minha pessoa.

Aqui faço recortes da obra citada de Carolina Maria de Jesus. São passagens que além do significado literário e social, têm identidade com minha concepção ideológica. A intenção é provocar empatia e consequente interesse para a leitura dessa grande mulher. As citações mantêm a autenticidade da escrita do livro. Vejam alguns fragmentos do livro Quarto de Despejo:

 “...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças” (JESUS, 2014, p. 32).

O fato de ser mãe solteira pobre fez de Carolina de Jesus uma protetora da sua sofrida prole. Ela fez questão de registrar o apego maternal à seus dois filhos e a sua filha, e o impacto que a fome provocava nas crianças. A maternidade foi uma condição de vida que Carolina adotou como sendo de luta e sobrevivência. Mesmo enquadrada no contexto subalterno da divisão de classes, sua formação cultural a empoderou na luta por uma vida digna e uma sociedade justa e igualitária.

 “Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar” (JESUS, 2014, p. 32).

“Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: “Tem mais? Esta palavra “tem mais’’ fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais” (JESUS, 2014, p. 41).

“Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida” (JESUS, 2014, p. 60).

“Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: — Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!” (JESUS, 2014, p. 70).

“Quando o João chegou da escola dei-lhe almoço. Depois fomos na cidade. Fomos a pé porque não tinha dinheiro para pagar a condução. Levei uma sacola e ia catando os ferros que encontrava nas ruas. Passamos pela rua da Cantareira. A Vera olhava os queijos e engulia as salivas” (JESUS, 2014, p. 119).

“Como é horrivel ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia” (JESUS, 2014, p. 158).

Foto: autor desconhecido. Internet

A obra de Carolina de Jesus traz sua face solidária; demonstra que ela sempre foi crítica; mas, também expõe seu lado de reciprocidade para com as dificuldades da sua comunidade. Todas as suas ações foram críticas, demonstrando sua força como mulher pobre e preta consciente do seu papel social.

 “Preparei a refeição para os filhos e fui lavar roupas. Quem estava no rio era a Dorça e uma nortista que dizia que a nora estava em trabalho de parto. Há treis dias. E não conseguia hospital. Chamaram a Radio Patrulha para interná-la e ainda não havia dado solução. A velha dizia: — São Paulo não presta. Se fosse no Norte era só chamar uma mulher, e pronto. — Mas a senhora não está no Norte. Precisa providenciar hospital para a mulher” ((JESUS, 2014, p. 153).

Falar de fome me entristece; escrever sobre o tema também. Mas me parece covardia dá as costas para uma realidade que assola milhões de pessoas no Brasil e pelo mundo afora. Então, encaro esse debate e volto a citar a narrativa de Carolina sobre o sofrimento de sua família sem ter o que comer. O domingo é o dia do desespero para ela porque não há o que recolher nas ruas; é um vazio da sua “produção semanal”.

“9 DE AGOSTO. Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo” (JESUS, 2014, p. 120).

O discurso da meritocracia de que pobre não estuda porque não quer e o argumento de que as pessoas pobres não querem trabalhar, além da afirmação de que pobre é preguiçoso, vem abaixo quando ouvimos de Carolina:

 “...Comecei queixar para a Dona Maria das Coelhas que o que eu ganho não dá para tratar os meus filhos. Eles não tem roupas nem o que calçar. E eu não paro um minuto. Cato tudo que se pode vender e a miséria continua firme ao meu lado. Ela disse-me que já está com nojo da vida. Ouvi seus lamentos em silêncio. E disse-lhe: — Nós já estamos predestinados a morrer de fome!” (JESUS, 2014, p. 161).

O fato de ser uma leitora compulsiva a tornava uma mulher bem informada e crítica quanto à política e suas nuances de poder. Ela, por exemplo, não perdia a oportunidade de verberar os políticos e suas práticas demagógicas.

“...Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (JESUS, 2014, p. 42).

“...Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (JESUS, 2014, p. 67).

“...Fui na sapataria retirar os papéis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade” (JESUS, 2014, p. 120).

Foto: El Pais. Internet.

Viver em um contexto de miséria e pobreza significa conviver com mazelas de toda natureza; da violência a apropriação indébita; da depressão a vulnerabilidade das doenças; da promiscuidade a loucura; da penúria ao suicídio.

“Fui catar papel. Estava indisposta. O povo da rua percebe quando eu estou triste. Ganhei 36,00. Voltei. Não conversei com ninguém. Estou sem ação com a vida. Começo achar a minha vida insipida e longa demais. Hoje o sol não saiu. O dia está triste igual a minha alma” (JESUS, 2014, p. 99).

“...Tem dia que eu invejo a vida das aves. Eu ando tão nervosa que estou com medo de ficar louca” (JESUS, 2014, p. 130).

A busca e o encontro da leitura fez de Carolina Maria de Jesus uma mulher a frente de seu tempo, uma artista sensível e culta. Ela escreveu vários gêneros literários e deixou uma obra brilhante para a eternidade. Viu e viveu a cultura circense, fez da poesia a expressão do seu sofrimento e da sua escrita cotidiana a narrativa do povo subalterno das favelas. Foi vítima do racismo e da injúria racial em toda sua trajetória de vida, componente registrado nos seus escritos com propriedade e essência literária. Procurou artistas, produtoras e editoras, mas, como a maioria que tenta publicar seus escritos, encontrou muitas portas fechadas porque fazer arte é difícil; mas, entrar no mercado de arte é uma tarefa quase infausta, além de complexa, para uma mulher preta, mãe solteira, pobre e favela. É quase impossível sair do sonho de se tornar uma escritora reconhecida pela crítica e pelo mercado editorial; mas, ela, como brasileira de fibra e luta, não desistiu nunca.

 “...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: —É pena você ser preta” (JESUS, 2014, p. 72).

“...Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto” (JESUS, 2014, p. 98-99).

Algumas narrativas de Carolina me tocam profundamente, todavia essas com que finalizo esse artigo me emocionam sempre que as leio porque constroem uma narrativa autêntica e real da população sofrida brasileira.

“15 DE JULHO. Hoje é o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu não posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar” (JESUS, 2014, p. 104).

“Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome” (JESUS, 2014, p. 111-112).

“28 DE JULHO ...Deixei o João e levei só a Vera e o José Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de suicidar. Hoje em dia quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado herói (...)” (JESUS, 2014, p. 114).

“Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje completa 10 anos. E eu apenas posso dar-lhe os parabéns, porque hoje nem sei se vamos comer” (JESUS, 2014, p. 118-119).

“Ontem comemos mal. E hoje pior ... Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoando de viver. Também, com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?” (JESUS, 2014, p. 135).

“Eu estou triste porque não tenho nada para comer. Não sei como havemos de fazer. Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa fome” (JESUS, 2014, p. 146).

“Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome” (JESUS, 2014, p. 183).

 

Foto: Editora Malê. Internet.

Referência

JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2014.