Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A indulgência como conexão entre o amor e o ódio

A indulgência como conexão entre o amor e o ódio

Carlos Cartaxo

Os museus dizem muito sobre a humanidade, por isso estou sempre me reportando aos museus como instituições formadoras que merecem todo nosso respeito e admiração. Recentemente tive a oportunidade de visitar o Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago, no Chile, aberto ao publico em 2010 com o objetivo de documentar os abusos cometidos pelo golpe militar e pela ditadura sangrenta de Augusto Pinochet, que de 1973 a 1990, portanto durante 17 anos, matou mais de três mil pessoas, além de muitos desaparecidos, instituindo o terrorismo do Estado.

O Museu me deixou surpreso, ao mesmo tempo alegre, porque através dele descobri o quanto o povo chileno tem uma formação humana que valoriza a vida e a democracia como bem infinito da humanidade. É claro que no Chile, assim como no Brasil, há seguimentos sociais estúpidos que defendem o terrorismo do Estado e, como consequência, contestam até hoje o papel do Museu. Não obstante essa corrente autoritária, lá como cá, predomina o pensamento plural e democrático. Quando o Museu chileno foi atacado ideologicamente, houve de imediato uma reação social. Essa formação politizada dos chilenos, em torno da justiça e da democracia, justificou o ato massivo de apoio ao Museu, e de desagravo às declarações estapafúrdias do ex-ministro Mauricio Rojas. Milhares de pessoas foram às ruas comparecer a um evento convocado por artistas e organizações de direitos humanos na capital chilena em apoio ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos.
Ao adentrar e cruzar os painéis expostos com as arbitrariedades e carnificina dos militares no dito Museu, muitas questões suscitaram na minha consciência de pai, escritor e pesquisador. A principal foi: o que leva uma pessoa a alimentar o ódio até mesmo quando devia regar o amor?
Painel com fotos dos mortos pela ditadura chilena. Há espaços em branco sinalizando os desaparecidos 
Foto: Carlos Cartaxo
A ditadura no Brasil acusou, prendeu, torturou e matou sem limites crianças, religiosos, mães de família, gente inocente, assim como militantes políticos. O mesmo aconteceu no Chile, da mesma forma que em todas as ditaduras pelo mundo a fora. A diferença marcante, e odiada por alguns, é que todas essas histórias horripilantes têm registros históricos incontestáveis. Portanto esses fatos documentais estão expostos no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, que é a instituição que tornou publicou essa realidade dura e crua. Como forma de preserva a memória da história do seu povo, o Chile não deixa por menos e denuncia as atrocidades que os militares e o capital internacional fizeram no país.
E no Brasil? Aqui, infelizmente, há milhares de pessoas que ainda defendem esse procedimento violento, rastro deixado pela ditadura militar! É inacreditável, mas é um fato. Nesses casos de atrocidades contra o ser humano, a indulgência se faz necessária. Essas criaturas desinformadas, ignorantes, doutrinadas ao individualismo, precisam ser reeducadas para pensar no próximo, na cultura da paz e do bem. No livro O evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, no final do capítulo que fala sobre a indulgência, há uma citação de São Luís que diz: “Se as imperfeições de uma pessoa não prejudicam senão a ela mesma, não há jamais utilidade em fazer conhecê-las, mas se podem causar prejuízos a outros, é preciso preferir o interesse da maioria ao interesse de um só. Segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode ser um dever, porque vale mais que um homem caia, do que vários se tornarem enganados ou suas vítimas.” (KARDEC, 2016, p. 108). Essa afirmação possibilita várias interpretações; contudo, quando se trata da violência e degradação da vida humana, museus e outros equipamentos e instrumentos culturais, políticos e sociais devem trazer a tona esse debate pela sua significativa importância.
A falta de leitura leva muita gente a um grau de alienação grave e, por conseguinte, defender o desrespeito ao ser humano, chegando a defender atrocidades como sendo procedimentos legais. Qualquer cidadão que tenha o mínimo de sensibilidade, educação, informação, conhecimento e bom senso, sabe que qualquer regime militar é uma imposição política arbitrária e equivocada para as nações que prezam pela democracia. No Chile, assim como no Brasil, também houve violência, arbitrariedades e rompimento com a democracia e os direitos civis. Por isso o Museu da Memória e dos Direitos Humanos está de porta aberta para desmascarar essas ações político-militares e informar a todos a necessidade da paz e da legalidade no que concerne ao respeito aos direitos civis. Lá, essa questão é tratada com tanta seriedade que o economista Mauricio Rojas foi escolhido do presidente do Chile , Sebastián Piñera, como ministro da Cultura, todavia, anteriormente, tinha criticado o Museu de Direitos Humanos questionando sua importância, logo sua validade, inclusive acusando-o de manipular a história; não deu outra, políticos e artistas exigiram sua renúncia, o que de fato aconteceu três dias depois de tomar posse como ministro da cultura.

O Museu se mostra claro quanto à certeza de que as ditaduras e o quadro político na America Latina têm semelhanças e que estas não são meras coincidências.  Em recente matéria, o Correio do Povo, de Porto Alegre, Brasil, publicou a matéria “Museu da Memória e dos Direitos Humanos alerta necessidade de relembrar passado”. Nesse artigo, o diretor do Museu Francisco Estévez fez uma interpelação à política na América Latina. Ele lembra que 40 mil pessoas foram vítimas das agruras da ditadura militar chilena. Como citado acima, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos chileno também é vítima de ataques por parte de correntes políticas de direita que tenta justificar o injustificável, no caso, as atrocidades dos militares. Felizmente há aqueles que defendem o Museu como um espaço que mantém acesa a chama da democracia, fazendo com que nunca mais ditaduras instalem a violência exercida do Estado nos países que têm a democracia como forma política de governo.

Para o Correio do Povo, Francisco Estévez, afirmou que “É importante educar em uma nova cultura de respeito, de bom trato, da ética dos direitos humanos, recordando o que aconteceu, mas ajudando as pessoas a refletirem sobre o que está acontecendo agora com esses temas, com nossos indígenas, com os temas de gênero, da migração, entre outros”.

Alguns seguimentos religiosos pautados apenas na leitura da bíblia e na doutrina do pensamento único e uniforme se tornam sectários com base na ignorância. Esses milhões de religiosos não sabem decodificar o sentido humano para indulgência, assim como não sabem a conexão existente entre ódio e amor. Por amor a um Deus, que eles também não compreendem quem é, disseminam o ódio como se fosse o amor. Dessa forma alimentam a cultura do agrotóxico, do desmatamento, do extermínio de pobres, negros e índios, da exploração do trabalho humano, entre outros dissabores e desamores. Dentro das próprias igrejas disseminam a tese “pura” da divindade a um Deus que eles não têm noção de quem é porque o Deus bondoso, que a grande maioria devota a fé, só reside no amor.

Diante desses equívocos, haja indulgência para transformar o ódio em amor; o que me leva a concluir que ações positivas urgem! Então a educação, leitura, visitas a museus entre outros procedimentos que alimentem a sensibilidade humana à cultura da verdade, são caminhos transformadores que podem facilitar a conexão que deve converter o ódio em amor.

 

Referências

CORREIO DO POVO. Museu da Memória e dos Direitos Humanos alerta necessidade de relembrar passado. Porto Alegre, 29 de maio de 2019.

KARDEC, Allan. O evangelho segundo o Espiritismo. Araras, SP, IDE, 2016.