Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A consciência, a ética e os eternos conflitos

 A consciência, a ética e os eternos conflitos

Carlos Cartaxo

 

 

A ética tem sido uma escada que insisto em subir desde que tive minhas primeiras lições sobre ideologia. O fato de estudar teatro na minha adolescência e, consequentemente, ler os gregos, me permitiu adentrar no universo da ética. Concomitante a esse período, na universidade tive o início da minha formação política; todavia as leituras e os debates foram os pilares que deram sustentação a tal formação. Hoje vivo um dilema entre a ética e a consciência. Em vários momentos esses dois pilares me põem contra a parede ao ponto de me sentir traído pela aprendizagem e consequente formação política; ao mesmo tempo tenho traído as expectativas de pessoas queridas que se afastaram de mim por causa das minhas posições, para elas, não convenientes.

Nesse texto posto abaixo algumas situações em que os fatos geraram conflitos entre minha consciência e os princípios éticos que trago comigo. Não foi e não é fácil conviver com esses dilemas que prefiro chamar de diferenças éticas.

 

Caso 1

Um casal sentou na areia da praia em Carapibus. A mulher estendeu uma canga e o homem colocou um mantenedor de temperatura ao lado cheio de cerveja. Sentaram e, com a beleza de todo casal em momentos de deleite, passaram a conversar e a admirar o que se pode ver de belo diante do mar. Ele pegou duas de cerveja, passou uma para ela e brindaram aquela tarde de maré baixa e água serena. Em seguida, ela acendeu um cigarro. Tomaram mais cervejas e mais cigarros. E assim foi até que acabou o estoque de bebida e eles resolveram ir embora, já próximo do anoitecer. As latas vazias voltaram para o lugar em que vieram, já o resto dos cigarros fumados, ela enterrou. Eu pensei sair e ir à rua conversa com eles sobre o lixo deixado na areia da praia. A consciência exigia que eu fizesse uma abordagem educativa, mas o fato de não conhecê-los e o conceito ético de respeitar o próximo como ele o é, me fez recuar e evitar, talvez, um conflito. Como o tempo não perdoa, meses depois conheci o casal e eles quiseram conhecer minha casa, nessa oportunidade descobri que o marido era eleitor e defensor de Bolsonaro e a mulher era a que deixou a sujeira na praia. Então a dúvida me consumiu: contar para eles o corrido e a impressão que tenho sobre as atitudes deles ou silenciar e deixar minha consciência magoada com minha atitude covarde de se omitir diante dos fatos?

 

Caso 2

            Eu sou grato pelos trinta anos, que completarei em 2022, como profissional do Serviço Público Federal, mais especificamente, como servidor concursado da Universidade Federal do Pará e Federal da Paraíba. Os momentos bons justificam minha escolha, todavia não posso passar por cima dos momentos em que a ética entrou em conflito com minha consciência. O fato de ter sido do Conselho Universitário – CONSUNI, do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CONSEPE e presidente do Conselho Curador me permitiu conhecer Leis, Resoluções, Regimentos e Estatutos. Essas experiências colocaram à minha frente situações que geraram discórdias entre a consciência e a ética. Muitos pareceres que escrevi com base na legalidade me fizeram perder amigos e até pessoas queridas. Infelizmente, no Brasil o “jeitinho” aplicado para amigos e correligionários tem sido uma prática que coloca o país no mapa da corrupção endêmica. Casos como: concursos dirigidos, alunos que não estudam e não frequentam as aulas, mas querem passar, cópias e plágios são exemplos corriqueiros que me colocaram em situações difíceis por defender a legalidade. Vou me aposentar como o chato; todavia aquele que procurou fazer e ensinar o que é correto.  

           

Foto: Carlos Cartaxo

Caso 3

            Eu sou daquelas pessoas que gostam de caminhar na praia, no meu bairro e de ir às compras a pé quando é possível. Nas caminhadas por Carapibus, praia no município do Conde, litoral sul da Paraíba, encontro muitas gaiolas penduradas no lado de fora das casas, varandas e janelas. Uma vez que eu passei, um senhor estava saindo e eu indaguei perguntando qual era o prazer dele em manter um ser vivo preso; um ser que tem asas e ele não permite que desfrute da liberdade de voar. A resposta foi:

            ― Esses passarinhos são minha vida. Se eu soltar, rasgo meu coração!

            Diante de uma fala dessa, eu emudeci. Claro não tinha como convencê-lo de que estava equivocado. Nem adiantava dizer que escrevi o texto teatral, infantil, “O tico-tico cantador”, publicado no livro Teatro de Atitudes, com o intuito de além de divertir, educar como o propósito de defender a liberdade de voar dos pássaros.

            O marcante nessa história é que os pássaros presos continuam lá, a polícia ambiental e a guarda municipal passam e fazem de conta que não vêem nada. Diante de tal fato só me resta escrever sobre a questão, que termina sendo uma forma de aliviar minha consciência, além de denunciar e questionar a ética da polícia.



  

Caso 4

Diante desses imbróglios que geram conflitos entre a consciência e o comportamento ético, uma vez ou outra aparece um bálsamo que alivia nosso sofrimento nos dando a oportunidade de continuar a defesa da ética, apesar das perdas e danos. Esse é o caso recente, dezembro de 2021, de uma aluna que me enviou a seguinte mensagem:

― Professor, eu sei que o período letivo com a sua matéria já acabou, mas queria muito te agradecer por tudo que o senhor ensinou. Graças a tudo que eu aprendi, na sua aula, eu consegui outra nota máxima no artigo do professor Rodrigo. Obrigada de verdade.

Terminar o ano de 2021, que não está sendo fácil, com a escrita de pequenas crônicas sobre o tema desse artigo, alivia minha consciência diante do volumoso mar de pouca ética que nos assola cotidianamente. É claro que não busco a verdade, nem abordo o tema ética apenas pela ótica da filosofia. Contudo, cito fatos que poderiam ser pitoresco, não obstante, são reais, logo susceptíveis a investigação e apuração, porque são do conhecimento de todos visto que são tratados de forma pública, seja na imprensa, na internet, nos cursos e departamentos ou nos Conselhos Universitários. Como o tempo não pára e 2022 está batendo na porta para adentrar, vamos adiante porque o horizonte é logo ali, mas está muito distante de alcançarmos.  

 

 

Referência

Cartaxo, Carlos. Teatro Determinado. João Pessoa: Sal da Terra, 2005.

 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Estrelas poéticas brilham

 

Estrelas poéticas brilham

 

Carlos Cartaxo

 

            Este artigo é a continuidade da postagem Estrelas poéticas, de agosto passado. Como a minha biblioteca é uma constelação de poetas, continuo publicando poemas dos livros não citados na postagem anterior. É a extensão do mergulho imaginário de poetas que alimentam a fome de leitora/es. Após deleites, estes têm, consequentemente, ânsia de encontrar nas palavras o prazer de ser e viver.

            Ao publicar o trabalho de poetas, me proponho a romper paradigmas quanto a ser leitor de poemas. Cruzo o horizonte imaginário para fazer uma viagem que passa por autora/es de vários mundos diferentes, com referenciais geográficos que descrevem uma cartografia universal. São autora/es que, direta ou indiretamente, têm uma ligação intelectual comigo, portanto fazem parte do meu acervo bibliográfico e sentimental. São histórias de vidas expressas através da arte; são criações que revigoram corações e mentes.

Alguns dos livros citados aqui, sinceramente, eu não sei como vieram parar em minhas mãos, se foi aquisição, presente ou doação; outros sei que foi através do coração. Tê-los ou lê-los me propicia uma simbiose que não deixa de ser uma metamorfose. É um casamento entre sensibilidade e leitura. O certo é que enriquecem minha biblioteca, me fazem mergulhar no universo da poesia e podem ser acessíveis a quem, simbioticamente, imergir nessa associação de seres e coisas, gente e livros, emoção e prazer, conhecimento e sabedoria.

 

Livro: Jardim da infância. Autor: Águia Mendes. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1979.

 

HAIKAI

O epiléptico

               É um

Homem eléctrico.

 

Livro: Poesias completas. Autor: Casimiro de Abreu. Rio de Janeiro: Ediouro, S/D.

 

VIOLETA

Sempre teu lábio severo

Me chama de borboleta!

Se eu deixo a rosa do prado

É só por ti — violeta!

 

Tu és formosa e modesta,

As outras são tão vaidosas!

Embora vivas na sombra

Amo-te mais do que às rosas.

 

A borboleta travessa

Vive de sol e de flores...

— Eu quero o sol de teus olhos,

O néctar dos teus amores!

 

Cativo de teu perfume

Não mais serei borboleta;

— Deixa eu dormir no teu seio,

Dá-me o teu mel — violeta!

 

Livro: Ecos do céu da boa. Autor: Clariça Ribeiro. Cajazeiras: Arribação, 2021.

 

OCUPAÇÃO

Meu corpo

É terra

Para ser ocupada.

Jamais invadida.

 

Deixei aqui suas bandeiras

E simbologias

Conduza assembléias por minhas tessituras

Distribua tarefas

Aprenda minhas demandas internas

E licenciosas estruturas.

 

De usufruto consentido

Faça dele moradia

Faça dele plantação

Tire dele seu sustento

Mate com ele a sua fome

Só não permita meu corpo-terra

Ocioso, improdutivo e sem função social.

 

No que depender de mim

Estão abolidas

Repressões

Truculências

Despejos

E violências.



 

Livro: Mosaico. Autor: Ed Porto. João Pessoa: Manufatura, 2009.

 

RELAÇÃO DE APARÊNCIA

Tenho

medo

de extremos:

 

de emos

de ogros

 

de extras

de faltas

 

de gordos

dietas

 

ditaduras

de esquerdas

 

de monarcas

de anárquicos

 

de Roma

de Krisna

 

de E.T.A.

de zona

 

de yoga

de droga

 

de igreja

degredo

 

de mórmons

de hereges

 

de segredo

de abertura

 

de censura

descaso

 

decretos

desertos

 

de escadas

descidas

 

de insosso

de sacarose

 

de osso

de sobras

 

de fácil

difícil

 

detento

disperso

 

Dispenso

tudo

que pesa

prum lado

apenas

 

Embora

pareça

o contrário.

 

Livro: Reencontro: cultivando a essência da alma. Autor: Luiz Madrid. Deerfild Beach: VlmPress, 2019.

 

O doce do beijo

A água na boca

Seu jeito, seu cheiro

É luz, é calor, só desejo.

Segue pelas matas do Serrano

Pelos trilhos de pedra

E os rios de diamantes

Uma força presente da natureza.

Caminhar, primeiro fica admirando

Depois, o só falar de alegria,

O riso nos olhos, o doce nos lábios

Um afago, um pequeno sufoco, uma falta de ar.

Dos morros dos cantos

Das pedras das cachoeiras

Do dia dos beijos roubados na gruta

Vejo teu corpo inteiro pelo canto dos olhos.

Do povo, das ruas e dos becos

Seguem os baianos, nasce a Dona Edite.

Das cores das casinhas e janelas, da luz amarela

Da noite, da luz da lua escondida, tudo inebria.

Dos brincos e pulseiras de couro

Da palha, do vento, do teu pensamento

Levo comigo teu corpo, e na voz de Caetano

Menino do Rio.

Os olhos se enchem de mágoa

Oh! Deus Xangô, me lave com a sua milagrosa água

Me benze, e só me deixa o bem

O bem do meu querer.

Fuja, mas não corra

Siga o seu caminho

Que as estrela te guiam

Pelas estradas e vida afora

Que as paisagens te falam

De um pequeno e simples libido

Reencontro de vida

Da estória do Pai Inácio, de um amor proibido.

 

Livro: cantando e contando histórias. Autor: Merlânio Maia. João Pessoa: Sal da Terra, S/D.

 

OBSESSÃO DIFERENTE

Quando Severo Macedo

Se apavorava de medo

Num estado terminal

Dizia ele a tremer:

Aurora eu vou morrer

Nessa cama de hospital

 

Nem pense! Dizia Aurora

Esta não é a sua hora

Tem muita vida a viver

Se a morte negociar

Eu irei no seu lugar

Pois num vivo sem você

 

Mas aí, dali a pouco

Severo num grito rouco

Passou desta pra melhor

E a velha a se estrebuchar

Dizia: — Não vou ficar

Aqui nesse mundo só!

 

E assim daí por diante

Clamava a todo instante

— “Vem Severo, meu amor

Pois eu quero te seguir

Vem, me carregar daqui

Pois é grande a minha dor”

 

O coitado do Macedo

Parecia até brinquedo

Na mão dessa obsessão

Que nem de casa saía

Tão triste a sofrer vivia

Nessa subjugação

 

Dona Aurora sem parar

Implorando para ficar

Ao lado do seu amor

Certa noite quando o chama

Vê severo ali na cama

Doente e cheio de dor

 

Dá um grito e sai correndo

— É o diabo que estou vendo

Te afasta, vai para trás

Eu sei dos trejeitos teus

Meu Severo está com Deus

“Vá de retro” Satanás!

 

Severo lhe diz: — Aurora

Não me afastei, uma hora

Você não me deixa em paz

Aurora grita: — Sai fora

Mafarro, pé-preto, espora

Vai pro inferno, Satanás!

 

Mas daquele dia em diante

Ela mudou-se num instante

Não fez mais evocação

E o seu Severo adorado

Só assim foi libertado

Da sua louca obsessão!

 

Livro: Plumagem do vento. Autor: Paulo Sérgio Vieira. João Pessoa: Editora da UFPB, 2019.

 

III

solo de mansinho.

poema ensaiando canto

de passarinho

 

maduros

caem os poemas.

pisamos fonemas

 

pé de poemas

cai, não cai, um haicai

preso a um fonema

 

poema maduro

e a inspiração se esvai.

cai, cai haicai.

 

sem borrões ou nódoas

 

a vida passa a limpo.

Novinha em folha

 

Livro: Varadouro. Autor: Políbio Alves. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2003.

 

Logradouro confins do mundo

couraça humana, espanto profundo

olhos assustados, solidão soa

apito do trem pelos trilhos à toa.

 

Das entranhas do interior

para os roncos dos motores

até as bandas de Cabedelo,

               a chegada do trem

               desdobra pesadelo.

 

               Vagão-vagão

                              correndo

                              correndo

               boca de fogo

                              engolindo

 

               a terra, engolindo

 

               boca de fogo,

caldeira fervendo

               fervendo

 

Passageiros,

cargueiros,

cão sem dono

no seu sono.

 

Livro: Atos em arte. Autor: Regina Lyra. São Paulo: Scortecci Editora, 2006.

 

Mais tarde

Mais tarde, penso que vejo,

Imagino beijos.

Mãos fazem carícias,

Bocas dão notícias...


Na sede que me ponho,

Sinto fome dos braços

Entrelaçados

Corpo desejado, amado...

 

Acalma gosto da boca.

Sacia, a sede,

Corpos separados...

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Primeiras impressões

 Primeiras impressões

Carlos Cartaxo

 

Nesse momento volto a escrever sobre arte e ensino de arte, depois de alguns poucos anos sem tocar nesse assunto. A abertura da 34 Bienal de Arte de São Paulo, agora em 4 de setembro último, me fez pensar a tradicional, e talvez ultrapassada, pergunta: isso é arte? Essa 34ᵃ Bienal tem como tema a frase Faz escuro mas eu canto. São 91 artistas expondo, oriundos de 39 países. Uma marca importante dessa Bienal é a exposição da arte indígena.  Falar da importância de uma Bienal de Arte é desnecessário; basta registrar que a Bienal citada nos presenteia com mais de mil pecas de arte expostas no Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera em São Paulo. Além da pluralidade criativa que expõe as possibilidades narrativas que a arte trás consigo, merece o registro de que a entrada na bienal de São Paulo é gratuita, o que fortalece a tese de que nem sempre arte é produto comercial, mas de deleite porque é uma expressão humana.

Eu tive a oportunidade de vivenciar uma Bienal de Arte de São Paulo, da mesma forma a 52 Bienal de Arte de Veneza, em 2007. Essas e outras experiências com arte e leituras, muitas leituras, contribuíram para o meu entendimento, hoje, do papel da arte no contexto pós-moderno e, aceitar o conceito de que arte é aquilo que o leitor entender como sendo arte. Esta leitura faz todo sentido, afinal é época de bienal de arte de São Paulo; é época da arte ratificar e se estabelecer como a liberdade de expressão humana. Um evento do porte de uma Bienal de Arte é um encontro de ideias, percepções, técnica, pintura, colagem, performance, vídeo, instalações e happening, além de outras possibilidades de expressões que podem surgir. Uma Bienal de Arte é um acontecimento que rompe barreiras, conecta países e o mundo propiciando intercâmbio cultural, ensino e aprendizagem.


Obra de León Ferrari na Bienal de arte de Veneza. Foto: Carlos Cartaxo

No livro Amor invisível: artes e possibilidades artísticas o personagem Rubens afirma que “arte tem um conceito aberto que depende da leitura do apreciador da obra” (CARTAXO, 2015, p. 441). Esta argumentação desconstrói a ideia de que quem determina o que é arte é um crítico, um professor, um diretor de arte, o administrador de uma galeria, etc. É evidente que o personagem Rubens, na citação acima, se pronuncia além do conceito moderno de mito ou gênio que é dado para um artista. Essa compreensão aberta para o conceito de arte aponta para uma re-significação desse conteúdo, o que corresponde a dizer que se precisa rever os valores estéticos que são ensinados. Esta acepção teórica ratifica a necessidade de se introduzir a cultura estética como um conteúdo nas aulas de arte porque essa aprendizagem é tão importante quanto apenas citar artistas impressionistas e expressionistas. No mesmo livro citado acima, o personagem Rubens afirma que:

Para compreendermos nossa cultura, precisamos tratar as tendências estéticas como uma disciplina variável e dúctil que propiciará a descoberta de riquezas, por exemplo, de nossas tradições visuais que estão inseridas em um contexto cultural, que evidentemente, amplia o
campo da historia da arte (CARTAXO, 2015, p. 449).

               Essa concepção ratifica que o conceito tradicional de estética precisa ser revisto através de uma leitura crítica sobre a dita alta cultura, o que vem sendo feito desde a Grécia antiga e que deve continuar. Pode ser redundante falar de alta cultura ou cultura clássica porque, para muitos, o conceito desta é intocável; todavia a tradicional bandeira da alta cultura deve ser olhada com uma leitura pós-moderna porque sua aceitação já não é consensual.

Ao contraio, esse posto hierárquico elitista perdeu força e reconhecimento, tendo em vista que a estética está presente a todos os campos das atividades culturais. Isto significa dizer que estamos vivendo sob o efeito da multiculturalidade (CARTAXO, 2015, p. 449-450).



Com base em Nestor Garcia Cancline busco no conceito de multiculturalidade a resposta para uma leitura pós-moderna que a definição de estética suporta na atualidade.  A questão não passa por gostar ou não gostar; mas por compreender as transformações sociais, econômicas e culturais pelas quais a sociedade passa. Eu posso não gostar de um trabalho artístico, mas jamais afirmar que não é arte. A pluralidade do conhecimento e o respeito pelo trabalho e pela escolha de outrem, quanto à arte, são condições essenciais para que o debate seja estabelecido de forma construtiva.

Eu tive a oportunidade de ler uma postagem de um professor de arte, em uma rede social, em que ele dizia que uma escultura de madeira, que sugeria uma árvore, não era arte. Até hoje não sei se a divergência era técnica, ideológica ou desconhecimento sobre história da arte, mais especificamente, a pós-modernidade. A primeira impressão que eu tenho é que, muitas vezes, só se tem informação sobre a arte acadêmica e a moderna, então, no caso citado, o conceito verdadeiro de arte adotado foi o da modernidade, que se resume em definir como obra de arte aquela que é original, única e autêntica. No caso da arte acadêmica, esta ficou em segundo plano porque sua criação era basicamente a reprodução da técnica. É fato que os Museus de Arte Moderna abriram e abrem as portas para redefinição da arte, como consequência se tem a arte contemporânea que surgiu para quebrar de vez com paradigmas como a do professor citado acima.

Além do conhecimento teórico e da formação artística, tenho a segunda impressão de que o/a professor/a precisa trabalhar com uma metodologia adequada ao ensino de arte. A metodologia construcionista, por exemplo, é um procedimento que tenho adotado desde o meu curso de doutorado. A proposta ironista também é uma corrente metodológica adotada por alguns artistas, que pode ser adotada no ensino de arte. Esses procedimentos surgiram a partir do contexto pós-moderno onde o sujeito ativo do processo de aprendizagem é o elemento construtor do conhecimento; o professor ou instrutor é apenas o fio condutor da aprendizagem, nunca o proprietário do saber.

Outra impressão, que trago comigo, é que apreciar, vivenciar, fruir e ensinar arte são procedimentos, necessários ao ser humano, que exigem conhecimento, leitura e experiência. Essa asserção ratifica a tese que defende a inserção do ensino de arte, concomitante as experiências artísticas desde a primeira infância porque a arte contribui para o equilíbrio emocional e a formação cultural da criança, tornando-a um adulto culto, crítico e sensível.  O personagem Rubens, já citado, critica a pedagogia predominante na maioria das escolas e afirma que

Não há mais quem aguente a estrutura surreal alicerçada em lacunas entre teoria e prática, prazer e saber, e motivação e aprendizagem. Ela passou a existir dentro de um abismo deformado, cujas faces e ângulos estão cada vez mais afastados da realidade. A escola se tornou uma úlcera da sociedade difícil de cicatrizar. E o construcionismo pode ser um caminho para eliminar essa úlcera (CARTAXO, 2015, p. 506).

               O construcionismo foi pensado, inicialmente por Seymour Papert, todavia se tornou uma metodologia relacionada a um produto, que, no caso das artes, pode ser uma imagem, um texto, um espetáculo cênico, uma instalação ou uma atividade acadêmica ou escolar, onde o conteúdo do trabalho esteja relacionado à realidade dos sujeitos envolvidos ou com o espaço, área ou local em que foi produzido, realizado e/ou utilizado. Cito essa abordagem na minha tese de doutorado e concluo que “é um processo em que há interação entre as pessoas e o conteúdo trabalhado” (CARTAXO, 2015, p. 507). É importante registrar que o construcionismo teve como âncora o pensamento crítico de Michel Foucault para enfrentar a força das relações de poder, e também se ancorou na pós-modernidade para confrontar os cânones do saber e do conhecimento.

Pode parecer repetitivo, mas não me entrego à redundância e repetirei quantas vezes for necessária a afirmação de que a falta de leitura é a responsável por conceitos repletos de verdades. Quando essas verdades partem de um/a professor/a a situação se agrava porque se reproduz uma informação defasada, ou melhor, ultrapassada por puro desconhecimento. É necessário ratificar que toda verdade é relativa, portanto quando alguém estufa o peito para afirmar que sua verdade é absoluta, vale a precaução de que o dono da verdade pode ser o rei da fraude. Vivenciar e fruir arte são as primeiras impressões que nunca largam do consciente e do inconsciente do ser humano.

 

Referências

BURR, Vivien. Introducció al construccionisme social. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya: Proa, 1997.

CANCLINE. Néstor García. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, EDUSP, 1998.

CAREY, John. ¿Para qué sirve el arte? Barcelona: Debate, 2007.

CARTAXO, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa, Editora do CCTA, 2015.

COELHO, Teixeira. Moderno Pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5  Ed. Rio de Janeiro:  Graal, 1985.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Estrelas poéticas

 Estrelas poéticas

Carlos Cartaxo

 




Há muito tempo que se conhece a máxima: de poeta e louco, todo mundo tem um pouco. Pois, então, eu fui visitar a minha biblioteca e encontrei vários alfarrábios de poesia, traços de escritores que tenho proximidade e apreço; por conseguinte resolvi dividir com minha dúzia de leitores a profundidade do mergulho poético que costumo dar nas publicações de escritores que, pelo menos um pouco, também, como eu, são loucos. Loucos pelos efeitos conotativos da vida, pelas possibilidades reais e abstratas de se fazer etéreo no universo pensante em que reside as possibilidades de ser humano.

 

O título Estrelas poéticas é um tanto comum, para não dizer redundante, já que o desenho poético da criação, por si só, é uma estrela brilhante. Todavia, optei por esse cabeçalho porque de fato, os trabalhos aqui comentados fazem parte do mar bibliotecário que repousa nas estantes do universo físico da minha coleção de escritores, poetas desvairados/as pelo além do olhar, do ver e enxergar; construtores/as do ser viver. Cada mergulho que dou ao folhear um livro de poesia, adentro na sensibilidade de poetas que, através dos seus escritos, dão sentido à vida porque viver não é uma escolha, mas uma missão, portanto compete a cada pessoa a liberdade de criar possibilidades que dão densidade as suas escolhas na vida; nesse sentido a poesia é para todo/as, mas poucos se permitem à oportunidade, e talvez, a ousadia de ser e viver fazendo usufruto do que a colheita do cotidiano lhe permite desfrutar.

Em toda escolha há um risco, logo tenho consciência que às escolhas aqui postadas são de minha inteira responsabilidade. Por se tratar de arte, parto do princípio pós-moderno de que o/a leitor/a é cúmplice do reconhecimento da seleção do/as escritore/as aqui publicado/as, mas não precisa concordar, necessariamente, com a minha seleção dos poemas.  Como toda verdade é relativa, abro as águas do mar poético aqui exposto para que o/as leitor/as possam mergulhar na criação do/as poetas que aqui estão adoçando ou salgando o desfrutar do seu trabalho criativo. Outra alternativa é voar por esse pequeno universo de estrelas das letras. Esclareço que o critério adotado, digo a curadoria, para a exposição dos poemas aqui publicadas parte do simples fato de que são escritos que repousam na minha biblioteca particular, por conseguinte, fazem parte dos meus mergulhos e vôos poéticos. A Aqui mantenho a forma tal qual o poema foi publicado. Aquele/as poetas que ainda não foram citados/as aqui, podem acrescer sua criação nos comentários como complemento ao mergulho que possamos realizar, coletivamente, como desfrute do mar poético.

 

 

Livro: O sol de algibeira. Autor: Águia Mendes. João Pessoa: Ideia, 2010.

 

Tuas luas

como são lindas

essas luas

fora do teu corpete

 

na noite

que ruge nuvens

brilham aterradoras

 

lindos faróis

 

estrelas auxiliadoras

 

Livro: Sob o amor Autor: Antônio Mariano. São Paulo: Pautá, 2013 SOB O AMOR

V

Devoto,

eu vos elejo,

Ceres,

bendita entre as fêmeas,

razão da existência

de minha fome.

A senhora é pra comer

rezando,

banquete divino

que se renova

em moto-contínuo,

pés,

mãos,

olhos,

boca,

peito,

umbigo,

greta sagrada,

orifício,

ajoelho-me

e vos adoro.

 

Livro: Acaso caos. Autor: Bruno Gaudêncio. João Pessoa: Ideia, 2013.

Acaso caos

o caos que existe em nos

não faz a cama,

mas abre as portas,

as pernas...

 

o acaso não liberta,

mas deixa a chama,

a chave,

na porta...

na pele

 

? acaso o caos

não é o cobertor?

? a madeira que divide

os nossos corpos

na hora do sexo?

 

 

Livro: Tempo. Autor: Emília Guerra. João Pessoa: Manufatura, 2008.

 

O tempo

De dar tempo

Ao tempo

 

O presente que

Ele e ela

Não quer

 

Quando acaba

O namoro

Para o homem

Ou para a mulher

 

 

Livro: As palavras me escrevem. Autor: Hildeberto Barbosa Filho. Itabuna: Mondrongo, 2019.

 

Adormeço

na madrugada dos teus seios,

vítima das vertigens

do repouso.

 

A noite adentra

meu corpo como pétalas

de luzes que não se apagam.

 

Só sei cantar os astros

do amor, quando o amor

derrama suas águas luminosas

no meu coração.

Desdenhem de mim,

poetas maiores, com suas elipses

aristocráticas.

 

Só sei cantar o que me encanta.

A loucura da musa,

sua beleza inenarrável.

 

Dante, Petrarca, Camões

fizeram assim.

 

Sou humildemente

um poeta menor, um lírico

de si mesmo, quase feliz

só por ter a minha amada

para cantar.

 

Verso nenhum vale

a sagrada sílaba

de quem ama.

 

Livro: O circo, o bicho e a festa. Autor: José Leite Guerra. João Pessoa: Edição do autor, S/D.

 

Salto solto

 

nasceu palhaço

teve vergonha

deixou de ser

 

vestiu-se homem

partiu ao sério

 

armou abraço:

o próprio circo

 

tanto mistério

perdeu o nome

e, também, homem

deixou de ser

 

 

 

Livro: Vislumbre. Autor: Marcos Barros. João Pessoa: Sal da Terra, 2005.

 

Limiar

 

No limiar

absorvo as horas,

os dias...

Absorvo o homem,

a vida...

Como a areia absorve a água.

 

Galopo pra não ser absorvido

no sequenciar...

Engulo para não ser engolido,

consumo para não ser consumido.

 

Ando para não ser passado,

faço história para ser sujeito,

sou sujeito para ter direito.

 

 

Livro: Diálogo das horas. Autor: Paulo Sérgio Vieira. João Pessoa: Editora da UFPB, 2014.

 

 

XXV

 

A abelha sopra

Mel no bambual

É flauta doce

 

 

Livro: Ilha perdida. Autora: Porcina Furtado. Cajazeiras: Editora Arribaçã, 2021.

 

Brincadeira

Não escrevo as minhas memórias

Escrevo para os dias de sol

Pra menina debruçada na janela

Que sonha acordada na tarde que finda

 

Escrevo para a insônia da noite

E para os devoradores de versos

 

Escrevo para os amantes e viajantes

Escrevo porque posso escrever

Brincar com todas as palavras

 

Escrevo para a lua dançante

E para os vagalumes brincantes

 

Escrevo para não desperdiçar os dias

Todos os poemas são inventados

Porque você chegou tarde.

 

Livro: Entre nós. Autor: Regina Lyra. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2008.

 

Noites insones

 

As noites

Buscam o Cacique

Sem fim.

 

Neste momento preciso,

A fala tem nome,

Apenas o desejo forte explica.

 

O Pajé anuncia:

Na dança,

No açoite do relâmpago

Da tempestade, enfim.

 

Sede do papo

Fome sem fim.

 

 

Livro: Entre Parénthesis. Autor: Romualdo Rodrigues Palhano. João Pessoa: Sal da Terra, 2010.

 

À primeira vista

 

Parece ser morte é vida

Parece ser vida é morte

Parece ser belo é disforme

Parece ser rico é pobre

Parece ser infame é glorioso

Parece douto é ignorante

Parece robusto é fraco

Parece nobre é ignóbil

Parece fraco é inteligente

Parece alegre é triste

Parece favorável é contrário

Parece amigo é inimigo

Parece salutar é nocivo.

 

 

Livro: O avesso da pele. Autor: Waldir Pedrosa Amorim. João Pessoa: Manufatura, 2005.

 

 O avesso do tempo

Pelo lado de dentro do tempo

esqueci das paradas

dos semáforos

dos sinais de contramão.

 

Era o avesso que me guiava

no surdo palmilhar.

 

Nem dos afavores, nem dos contrários eu

entendia.

Nem se os ventos atiçavam os meus pelos nem

em que direção.

 

Nada da epiderme eu pressentia, senão o avesso

da

epiderme.

Bastava-me este,

se é que importava o que bastasse,

ou, o que ausência tivesse provocado.

 

Era o avesso, o íntimo, o interior,

o refratário às medidas.

Era uma tipografia ruminada

entre silêncios.

Era o avesso do tempo: poesia.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

O “achismo” no universo da comunicação

 O “achismo” no universo da comunicação

Carlos Cartaxo

 

É natural a preocupação da família com relação à formação dos filhos e, consequentemente, seu futuro. A educação ética e moral deve ser a luz pedagógica que clareia essa formação, cujo objetivo é constituir e consolidar uma sociedade justa e democrática, que respeita os sujeitos sociais e suas diferenças. Em alguns casos essa abordagem educativa se dá de forma conservadora, em outros, literalmente, revolucionária. Embora esse conteúdo esteja inserido na grade curricular dos programas escolares, diretamente através da sociologia e da filosofia, ou indiretamente através de outras disciplinas, há quem considere esse conteúdo desnecessário ou indesejado, portanto desqualificado. Não obstante essa posição conservadora e indo no sentido contrário dela, eu compreendo que estudos com esse foco são de extrema importância para se alcançar a tão sonhada sociedade civilizada, logo, evoluída.

Pesquisadores da comunicação têm se voltado para essa questão com afinco, no sentido de investigar até que ponto o que é veiculado nas mídias, em especial na televisão, contribui para o equilíbrio social e consolidação de uma sociedade democrática e plural. Em contrapartida, os meios de comunicação poderosos, me refiro aos grandes conglomerados corporativos, se valem do conceito de liberdade de imprensa para veicularem excessos e com eles, desvios de valores, nas informações que colocam no ar, como sendo verdades absolutas.     

A comunicação sempre foi considerada um quarto poder, o que lhe dá uma importância significativa, por conseguinte garante a defesa da liberdade de expressão, que por vez, se entende como emissão e propagação de informações precisas, éticas e corretas. Essa compreensão deveria ser regra e princípio no universo da comunicação; todavia as pesquisas comprovam que há uma tendência ao contrário. Muito do que é veiculado como informação tem o efeito contrário de desinformar. Nesse sentido, se diagnostica a adoção massiva de conteúdos sem fundamentação teórica, o que se configura como prática do “achismo”. A constatação parece óbvia, mas não é. A afirmação de que o “achismo” é uma doença contagiosa, grave, pode parece leviana, contudo essa assertiva tem crédito e precisa ser analisada com profundidade para ser ratificada como a praga da desinformação.

Foto: Carlos Cartaxo


Em recente trabalho como professor e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba na área de arte e comunicação pude constatar que parte dos comunicadores, muitos deles jornalistas, se baseiam em informações sem consistência científica para formar opinião e, como consequência, disseminar inverdades ou meia-verdade. É o conhecido jornalismo sensacionalista. Nesse caso recorro ao Dicionário de Comunicação para definir esse tipo de jornalismo:

Estilo jornalístico caracterizado por intencional exagero da importância de um acontecimento, na divulgação e exploração de uma matéria, de modo a emocionar ou escandalizar o público. Esse exagero pode estar expresso no tema (no conteúdo), na forma do texto e na apresentação visual (diagramação) da notícia. O apelo ao sensacionalismo pode conter objetivos políticos (mobilizar a opinião pública para determinar atitudes ou pontos de vista) ou comerciais (aumentar a tiragem do jornal). (...) 2. Qualquer manifestação literária, artística etc,. que explore sensações fortes, escândalos ou temas chocantes, para atrair a atenção do público (BARBOSA e RABAÇA, 2002).

A questão de proferir argumentos que, segundo o emissor, são verdades ditas e escritas, no fundo se pauta na concepção do comunicador que “acha” que determinado assunto é verdade ou mentira. O Grupo de Pesquisa Comunicação, Artes e possibilidades narrativas, do Centro de Comunicação, Turismo e Artes da UFPB, pesquisou programas policias da televisão brasileira e pôde constatar que o “achismo” é a base da fundamentação teórica que dá sustentação as opiniões emitidas por certos comunicadores. Estes profissionais desconhecem o movimento hegeliano que se resume em: tese/antítese/síntese, ou seja, a base da informação veiculada, centrada no tripé: violência, sangue e morte, não apresenta conteúdo que dê sustentação qualitativa a mensagem emitida. A base da informação veiculada é, só e somente só, “achismo”, não tem uma tese que se contraponha a antítese social, que dê sustentação teórica para que dela se tenha como resultado uma síntese. Desses programas o que fica são frases de efeitos com provocações espetaculares, sensacionalistas, como: mais um bandido tirado de circulação; bandido bom é bandido morto; aqui não tem ninguém para defender bandido; se tiver de morrer que seja o bandido; a polícia abriu fogo e meteu chumbo. Essas mensagens são proferidas constantemente, repetidas como mantra, a cada três minutos.

Essa abordagem sensacionalista que chega, ao leitor desavisado, como um petardo reluzente de verdades e soluções tem que ser abominada e contestada porque é uma fábrica que produz inverdades, por conseguinte, desinformações. A abordagem crítica em questão não deve ser focada no confronto entre bandido e polícia; mas, em narrativas que reflitam as contradições sociais do nosso cotidiano, como por exemplo: Porque existem bandidos? Que tipos de bandidos existem? O que leva um/a jovem ao mundo do crime? No combate, o bandido rico recebe o mesmo tratamento do bandido pobre? A diferença de classe é um fenômeno social e econômico gerador de bandidos? A mídia sensacionalista dá ao bandido da periferia o mesmo tratamento que dá ao bandido de paletó e gravata? Por que o tráfico de armas e drogas não é combatido, rigorosamente, pelas polícias? Por que setenta por cento dos presidiários são negros? Por trás dessas questões deveriam está abordagens à legítima defesa do Estado de Direito, do combate ao autoritarismo e ao abuso de poder. Eis a questão que precisa está viva e presente na democracia e nos meios de comunicação!

Por trás da narrativa sensacionalista há a multiplicação exponencial do discurso de ódio; por exemplo, dissemina informações inverídicas sobre direitos humanos. A tese de que bandido bom é bandido morto é uma constante subliminar que programas policiais disseminam baseada no discurso de que a salvação social não é a redução da diferença de classe, mas a morte dos bandidos. Antes de tudo, é bom definir que essa é uma questão conceitual. Como alguém ocupa o assento de um estúdio de rádio, televisão ou de gravação de vídeo e se apropria de um microfone para emitir informação que não conhece? Falar de violência, de polícia e bandido exige conhecimento, estudos científicos sobre o tema; se assim não o for, o conteúdo proferido é puro “achismo”, portanto suspeito pela ótica do bom jornalismo, da ética e da verdadeira liberdade de expressão.

Os comunicadores pesquisados demonstram que nunca leram sobre direitos humanos e se arrogam ao “achismo” denotativo que denigre o conceito de direitos humanos; se arvoram a falar de direitos sem conhecê-los. Nunca leram Nietzsche para entenderem as relações de macro e micro poder; para adquirirem a informação de que o conhecimento é uma característica nata, evolutiva, do ser humano. Consequentemente, sem encontrar neles conteúdo substancial sobre as informações por eles veiculadas, sou levado a questionar: Como um comunicador ousa falar de violência sem nunca ter lido o livro Brasil nunca mais, publicação da Arquidiocese de São Paulo ou o livro Direitos Humanos: Violência e diversidade, publicação do CCTA/UFPB? Essa é uma questão que resulta da constatação de que o desconhecimento gera a desinformação que induz a concepções inverídicas ou, no mínimo, suspeitas.

Outra reflexão precisa ser abordada aqui, que é o fato de que por trás dessa questão ética e moral está a tão almejada audiência nos meios de comunicação, o que significa dinheiro e poder; em busca dessa dita cuja, se dá um desvio na ética e se usa o “achismo” como fonte de verdades, emitindo informações que ferem a liberdade de expressão porque, em muitos casos, contribuem pouco ou quase nada, com a informação ética. Um apêndice que fortalece essa prática é o investimento que empresas fazem nesse tipo de programação. Cabe a nós pesquisadores alertarmos a sociedade sobre essa prática nefasta que emite, em forma de impropério, informações que ratificam a disseminação do ódio e a falta de ética em nome da liberdade de expressão.

Alguns veículos de comunicação e, mais especificamente, comunicadores, insistem em afirmar que João Pessoa é a cidade mais verde do Brasil. A partir de algumas informações duvidosas, décadas atrás, essa inverdade se expandiu pelas redes sociais. Recentemente a célebre paraibana, Juliette Freire, falou essa inverdade no Programa do Faustão da rede Globo sem se dá conta de onde tirou essa matéria. Infelizmente essa é outra informação baseada no “achismo” porque não tem base científica alguma. Não há estudos que comprovem esse argumento falacioso, há muito divulgado por alguns comunicadores no Estado da Paraíba. Por muito tempo foi divulgado que João Pessoa, que deveria se chamar Parahyba, era a segunda cidade mais verde do Brasil. Agora se espalha que é a primeira. O “achismo” se expande como fogo no palheiro, baseado em ilações que não têm base científica, porque não são oriundas de um conteúdo cuja fonte gera o que não é criado a partir do sentido concreto e real da informação.

A ausência de informações com base científica nos programas sensacionalistas é tão acentuada que alguns comunicadores falam de fome sem entender uma vírgula do papel da assistência social. Confundem assistência social com assistencialismo. A fome é uma praga do mundo não civilizado e está diretamente ligada a diferenças sociais, a concentração renda e corrupção, mas o/as comunicadore/as senhore/as da verdade ousam falar de corrupção sem ter como base as políticas de combate a fome e a defesa da ética na política, ações fáceis de serem assimiladas porque são bem sucedidas no mundo contemporâneo.

A lógica da tão combatida desinformação do “achismo” é: quanto mais gente imbecilizada, mais dificuldades terão os desinformados de decodificar as verdades e, consequentemente, as inverdades. É incoerente pensar que a emissão de meias-verdades significa formação, ao contrário, o desconhecimento do conteúdo das matérias veiculadas gera inverdades que repetidas inúmeras vezes, cotidianamente, adquirem senso de credibilidade, embora sejam inverídicas.

Há inúmeros artigos científicos sobre o tema abordado aqui. Todavia cito o artigo “Jornalismo Policial: Influência no Pensamento de Crianças e Adolescentes” de Elisângela Marinho Bezerra e Roberia Nadia Araujo Nascimento da Universidade Estadual da Paraíba – Campina Grande, Paraíba, apresentado no Intercom pelo fato deste ser voltado para o universo pedagógico. A pesquisa realizada com crianças de 12 à 14 anos de turmas do 7º e 8º ano da Escola Maria de Socorro Aragão na cidade de Monteiro-PB. O instrumento metodológico utilizado foi a aplicação de um questionário para diagnosticar as informações e opiniões emitidas no programa policial Cidade Alerta, que tinha como âncora o jornalista Marcelo Rezende, na Rede Record. A hipótese do artigo é “que o jornalismo policial produzido no Brasil não é adequado para as crianças e adolescentes e se justifica por se constituir material capaz de provocar reflexões sobre a qualidade e questões éticas que abalizam esse tipo de conteúdo jornalístico” (BEZERRA e NASCIMENTO, 2015). Esse artigo ratifica a tese aqui defendida de que o jornalismo policial, dá forma como é gerido, fortalece a prática do “achismo” na comunicação .

O jornalismo policial sensacionalista não é errado como muitos críticos afirmam, ele pode sim contribuir de alguma forma, talvez em uma parcela bem pequena para o desenvolvimento intelectual de nossa sociedade. O grave e crucial erro está no fato de não levar a sociedade a refletir sobre os assuntos que estão por trás das notícias transmitidas. Se ater apenas a dualidade Bem e Mal, é um equívoco gravíssimo, condenar pessoas por crimes cometidos, sem ao menos mostrar ao público quais os verdadeiros motivos que levaram aquele ser - humano a cometer tal ato, é contra a ética jornalística, que nos orienta a mostrar sempre os dois lados da história, e de todos os ângulos possíveis e imagináveis (BEZERRA e NASCIMENTO, 2015).

As considerações parciais do trabalho do Grupo de Pesquisa Comunicação, Artes e possibilidades narrativas, que motivaram esse artigo, aqui publicado, demonstram que é preocupante o que vem sendo veiculado na televisão aberta brasileira, principalmente, nos programas sensacionalistas de cunho policial. A não fundamentação do conteúdo veiculado cotidianamente, pelos comunicadores dos programas policiais, pode causar um desserviço à sociedade e a democrática porque dissemina a cultural da meia-verdade por meio da argumentação falaciosa do “achismo”.

 

Referências

 

ARNS, Paulo Evaristo. Brasil nunca mais. Petrópolis: vozes, 1986. 12 Edição.

BARBOSA, Gustavo; RABAÇA, Carlos Alberto. Dicionário de Comunicação. Editora Campus. 5 edição. 2002.

BEZERRA, Elisângela Marinho; NASCIMENTO, Roberia Nadia Araujo. Jornalismo Policial: Influência no Pensamento de Crianças e Adolescentes. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal - RN – 02 a 04/07/2015.

BRUM, José Thomas. Nietzsche: as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Companhia das Letras,

RABAY, Glória; BATISTA, Gustavo B. de M; OLIVEIRA, Hilderline Câmara de; ARAÚJO Jaíne; FRANÇA, Marlene Helena de Oliveira; IRELAND, Timothy Denis (Orgs). Direitos Humanos: Violência e diversidade/E-book. João Pessoa: Editora do CCTA, 2020, Vol 2.