Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Virando a página

                                                                    Virando a página

Carlos Cartaxo


Sempre que o ano termina muitos de nós planejam virar a página da vida; seja no trabalho, no comportamento, no amor; enfim, virar a página para renovar e evoluir. Da pré-história à pós-modernidade o ser humano tem evoluído de forma surpreendente; essa leitura na linha do tempo me faz terminar o ano de 2022 vendo algumas passagens que me marcaram durante o corrente ano. A efígie que me surge à mente suscita uma análise sobre o nível de leitura e o inesperado efeito que me ocasiona e me faz mais reflexivo. Falar dos benefícios da leitura é pleonástico; por isso, é inevitável trazer à tona a pergunta: por que tanta gente conhecida não gosta de leitura e não tem o livro e o conhecimento como aliado à evolução pessoal e à felicidade? 

Eu fui presenteado por minha amiga Isabel Cristina com o livro de poesias Inquietações de José Florentino Neto. É redundante falar da sensibilidade e nível cultural de minha amiga e irmã Isabel; mas, inspirado na empatia de comungarmos do mesmo apreço, peço licença ao autor para publicar uma poesia do seu livro que é referência para se virar a página através da literatura.


“MARCHA

Diante do quadro caótico

Incentivo ao comércio bélico

Finjo nada bucólico

Semblante quão melancólico


Manifestos e gestos mil

Por esse Brasil varonil

Direita, esquerda, volver

Pra jamais se arrepender


Sem lisura nem doçura

Caminha tranquilo, sereno

Nas ruas dessa cidade

Com um bando de gato pingado


Hoje tem grito de guerra

Somos uníssonos a palar

Sentido forte e sangrento

Por um país tão barulhento


Verborragia é sua cartilha

Pois não passou do bê-a-bá

Segue consigo a matilha

Desfilando sua artilharia


Faixas, cartazes, bandeiras

Imagem que a realidade clareia

Vidas negras importam

Quero te ver respirar”

Foto: Carlos Cartaxo

A publicação do poema de José Florentino Neto não passa por uma crítica de arte de minha parte; afinal, eu não sou crítico literário; contudo, esse trabalho representa a virada de página que a literatura nos possibilita realizar e vivenciar ratificando a possibilidade de ser e refazer o brilho da nossa trajetória.

Abordo essa questão porque presenteei minha amiga Maria com meu livro de contos “Contatos” porque  sei que ela não tem o hábito da leitura e gostaria de tê-lo. A mesma, certa vez, me perguntou o que deveria fazer para gostar de ler; pois, tem bloqueio e, ao iniciar uma leitura, não consegue virar a página para dar continuidade ao mergulho no universo literário. Essa questão também passa por dois amigos, vizinhos, que estão no campo ideológico da direita que, por não lerem, têm uma leitura de mundo egoísta e excludente. Como a leitura nos conduz a viagens inimagináveis, ler pode ser um risco a essas pessoas porque as colocam diante de mundos que podem ser surpreendentes, por isso insuportáveis. 

Foto: Carlos Cartaxo

Esse comportamento de imersão na leitura é "perigoso'' porque possibilita a compreensão das diferenças de classes e das contradições sociais, o que ratifica a tese de que a evolução do ser humano depende da leitura plural e múltipla no que concerne ao gênero, estilo e conteúdo. 

É fato que a falta de leitura limita a visão de futuro, a análise interior, a percepção dos contrários, o senso de solidariedade, a cultura de comportamentos éticos, o entendimento dos direitos humanos, os valores étnicos-raciais, a defesa do meio-ambiente, o respeito para com o próximo, o combate à corrupção, a crítica e autocrítica e o entendimento do que venha a ser o amor.

Foto da internet 

Com o intuito propositivo de abrir portas, janelas e mentes à leitura, abordo sobre o projeto excelso  Literature Vs Traffic (Literatura vs Tráfego), uma intervenção cultural em que livros tomam conta de uma rua de Toronto no Canadá. É um festival artístico em que as ruas se tornam rios de saber com a disposição de livros para permuta e doação. São 10.000 livros que provocam um efeito visual instigador que, naturalmente, introduz o conceito de intervenção artística como fonte de formação cultural. O fácil acesso a livros estimula a cultura da leitura e faz do Canadá um país desenvolvido e, por conseguinte, evoluído. Segundo greenme.com.br, o “Luzinterruptus, grupo anônimo responsável pela intervenção urbana, recebeu os livros do Exército da Salvação. Além disso, mais de 50 voluntários trabalharam por mais de 12 dias para preencher a rua com os livros”. O ruído de veículos e a poluição gerada por estes cedem lugar à luz do conhecimento que são emitidas a partir das páginas ali acessíveis e consultadas. O grupo realizador, segundo o GreenMe, afirma que “Os livros estão lá para aqueles que querem levá-los. Desta maneira a intervenção vai se reciclando e durará tanto quanto as pessoas quiserem que dure“. A intervenção durou 10 horas e marcou o consciente e inconsciente de muita gente, inclusive eu.

                                                                     Foto da internet 

No Brasil há inúmeros projetos de rodas de leitura e estímulo à leitura. Cito dois que estão próximos de mim e me enobrece partilhá-los: 1) a Biblioteca do Mar, em Jacumã, Conde, Paraíba; e 2) Roda de Leitura do CENEP, em Nova Palmeira, Paraíba; contudo, falta uma política pública de acesso e incentivo à leitura. Como exemplo, cito um edital do Governo da Paraíba, através da FUNESC, que lançou o edital N° 017/2022 do Prêmio Literário José Lins do Rego; eu fiquei absorto com o dito "prêmio": é zero em dinheiro!  O livro premiado só pode ter no máximo 90 laudas escritas (entendo páginas). A edição de cada obra terá a publicação de 300 livros e o autor só terá direito a 50 volumes, como pagamento dos direitos autorais. Se é assim, entendo como sendo a usurpação da criatividade e  do trabalho do autor; além de que, a exigência do romance ter no máximo 90 laudas é um acinte; é atrofiar o trabalho úbere do romancista! Em ano de eleições, um edital desse só vai no sentido contrário da candidatura à reeleição do governador e nos leva a crer que é um edital direcionado para apenas um grupo de pessoas! O governador foi reeleito, só nos resta saber se essa política terá continuidade. Se for, é mais um pesadelo da incompetência e do direcionamento indesejável da política cultural em um estado da federação cuja produção cultural é significativa por ser representativa e exponencial.

Apesar do pouco estímulo à leitura, do pouco acesso das crianças ao universo literário e, por conseguinte, do excesso de adultos não leitores, faz-se necessário a virada da página para que continuemos a plantar conhecimento na busca de  colhermos sabedoria.

 


Referências

CARTAXO, Carlos. Contatos. João Pessoa: Editora do CCTA, 2014.

FLORENTINO NETO, José. Inquietações, João Pessoa: Ideia, 2022.


Internet

https://www.facebook.com/nossabibliotecadomar2019/

https://irmaoslivreiros.com.br/artistas-inundam-as-ruas-do-canada-com-10-mil-livros/

https://www.greenme.com.br/viver/arte-e-cultura/63625-10-000-livros-tomam-conta-de-uma-rua-em-toronto/

https://www.facebook.com/590118814398905/posts/1642855609125215/ (CENEP)

sábado, 15 de outubro de 2022

O amor além de 40 anos

 O amor além de 40 anos

Carlos Cartaxo



Nesse momento em que o Brasil volta ao mapa da fome, eu completo quarenta anos de formado como engenheiro mecânico, olhando para trás, enxergando onde estou, e, a espera de um futuro baseado em um presente que, apesar dos espinhos e percalços, tem o aroma de flores que exalam uma história de vida florida, sem medo de erra, com amor. Da minha turma de formandos, todos fizeram carreia profissional que é motivo de orgulho. Essa grupo de jovens senhores está bem e, felizmente, contando belas histórias de vidasLembro que histórias de vidas é uma área do conhecimento que trato no meu livro “Amor invisível: artes e possibilidades narrativas”, resultado da minha tese de doutorado. Esse tema foi fonte de pesquisa do inglês Ivor F. Goodson e despertou em mim a necessidade de seguir essa vereda para encontrar a construção do conhecimento em meus pares e em mim mesmo.

Não obstante, esses avanços pessoaisolho para meu entorno e vejo que há muito o que fazer pelo próximo que está escondido pela invisibilidade das diferenças sociais. Segundo a ActionAid, através do seu programa de combate a fome no Brasil: “A fome dobrou nas famílias com crianças de até 10 anos de idade, entre 2020 e 2022. E o número total de pessoas que passam fome superou os 33 milhões. Uma piora absurda em um cenário que já era inaceitável”. Eu não gostaria de escrever sobre esse tema; contudo, vivemos um momento em que se faz necessário refletir, analisar e criticar a situação a qual o povo brasileiro está imerso.

É assertivo afirmar que a fome tem lugar, classe social, gênero e cor. Essa é uma condição instituída em todo o mundo; todavia, olho para o arrabalde e vejo meu povo humilde mergulhado em uma condição social deplorável; e, eu, como cristão, não posso me eximir de debater o tema. Inicio identificando minha infância pobre e o ingresso, como estudante, na Universidade Federal da Paraíba. Olho a história e identifico a minha turma de engenharia na UFPB, jovens de vários matizes que tiveram acesso a uma universidade pública e gratuita e construíram admirável carreira profissional e pessoal. Essa história deve ser a evolução social e profissional de todo jovem brasileiro em detrimento de sua classe social.


                                                            Fonte: 
Arquivo/Agência Brasil

Em homenagem aos 40 anos de graduados, escrevi o texto abaixo, em forma de conto, para resgatar, mesmo que nostalgicamente, a trajetória dos jovens engenheiros, hoje senhores aposentados ou em fase de aposentadoria. Vejamos:

“Quando amanheço, sem pão e sem trabalho, vendo no meu agasalho, os remendos de outra cor”; com essa música de Linda Batista, a mãe sempre entoava essa canção para o filho quando o colocava no coloA frase sem pão e sem trabalho ficou no inconsciente do garoto, por incrível que pareça, até a fase da sua juventudee, com ela, cresceu e se tornou homem e profissional da engenharia e da educação.

Como era de praxe, sempre que a mãe apresentava o filho para alguém, demonstrava alegria e orgulho, e, perguntava:

 Meu filho, quando crescer vai ser o quê?

Ele sempre queria ser médico, professor, policial, enfim, a resposta dependia do momento e circunstância, de acordo com o universo infantil. Esse foi mais um lexema que ficou gravado e seguiu as mutações fisiológicas e intelectuais do rapaz. Na adolescência, ele ouvia “Amanhã vai ser outro dia”, cancão de Chico Buarque, metáfora que se reportava ao fim da ditadura militar vigente no Brasil à época e a esperança da consolidação de um país democrata. Nessa fase, ele teve acesso aos conceitos de solidariedade e humanidade que tinham relação direta com os princípios cristãos que o mesmo recebeu quando da infância na igreja católica.

Com esforço e dedicação, ele terminou o ensino médio, digo, o segundo grau, apaixonado pelo conteúdo termodinâmica, da física, o que o motivou a prestar vestibular, depois PSS Processo Seletivo Seriado, para o curso de Engenharia Mecânica. Essa escolha resultou na aprovação para o referido curso na Universidade Federal da Paraíba em 1978.

Na universidade, pública e gratuita, mais especificamente, a magnífica UFPBencontrou dezenas de guerreiros, cavaleiros quixoteanos, que empunharam a lança nos estudos com o fim de concretizar o projeto de suas vidas de serem engenheiros. Fora muitas noites acordadas, fins de semanas dedicados aos livros, na sua maioria emprestados, “colas” ou “filas” que reforçavam a segurança para quebrarem os muros das dificuldades didáticasmais uma vez a solidariedade se fez presente na vida daquele jovem.

Assim, a década de setenta adentrou a década de oitenta do século XX e, mais especificamente em 1982, como uma alvorada que nos traz a luz de um novo dia, aqueles cavaleiros rútilos chegaram ao fim da missão estudantil e se graduaram engenheiros mecânicos.

Como a sensibilidade humana é um alimento subjetivo que é construído ao longo do tempo, aquele jovem, hoje senhor, compreendeu que deveria resgatar os valores, as conquistas, as dificuldades e as alegrias. Sempre lembrava do gingado futebolístico de Cerezo; do sorriso autêntico de Risadinha; do brilho avermelhado no fusquinha de Cici; do representativo e volumoso Buda; dos trejeitos do “índio” Potiguara; dPreto caprichoso que, na sala, só sentava na frente; da paixão incomensurável do galã Paqueradordo sertanejo Andorinhada tranquilidade de o Gênio; da Pomba que trafegava por pontesdPitoresco Nonó do sertão; dWolvo engenheiro transformista em juiz; do Bornai de Cruz das Armas; dPoeta baienense; dBaixinho invocado sergipano; do Leo grandão; do cientista que se tornou bancário; e do Cachaça que não era alcoólatra. A idade avançou para aquela criança, inicialmente, aqui citada, e, certamente, o presenteou com o esquecimento do apelido de nobres colegas que não foram citados, mas que fazem parte das vidas de todos os que comungaram daqueles momentos.

O tempo abriu caminho e aquele garoto, ou melhor, aqueles garotos, se tornaram sessentões e tiveram a dádiva de completarem quatro décadas de formados; honrosamente, engenheiros mecânicos. São quarenta anos alicerçados em bravuras, conquistas e vitórias. E uma pequena parte da história da UFPB; é o reflexo de uma sociedade que construída com base no conhecimento se fez realidade. Que a história, banhada por nostalgia, faça com que esses engenheiros e seus familiares sejam muito felizes e gratos pela universidade, no caso, a UFPB, e pela sociedade que propiciou condições materiais e pedagógicas para a consolidação do projeto de vida de todos eles.

Que a felicidade os abrace alimentando a gratidão por serem frutos de uma universidade pública, gratuita e de qualidade.

Viva a UFPB!

Viva os engenheiros mecânicos que, na labuta, fazem história.



                                               Fonte: Arquivo dos engenheiros mecânicos, UFPB, 781.

O texto acima, digo conto, é um álibi que ratifica a importância da educação e, em especial, da universidade pública na formação de jovens e na estruturação de um país que consolida oportunidades para todos, efetivando uma sociedade sem pobreza e socialmente justa, onde as pessoas tenham capacidade de criar mudanças para si mesmas, para o próximo e para suas comunidades.

Dentro do meu conceito de que, para sermos felizes, precisamos disseminar o amor, brado, sem medo de ser feliz, que se faz necessário socializar o conhecimento e, evidentemente, oportunidades concretas e reais para que todos, sem exceção de classe social, gênero, cor e origem, entenda-se lugar, galguem patamares evolutivos, que é a missão de todo ser humano na passagem material pelo planeta terra.

É salutar e conveniente que eu conclua esse breve texto desejando abraçar todas as pessoas, gente que, como eu, defende e pensa pela lógica de valores universais como “respeito mútuo, integridade, equidade, justiça solidariedade com as pessoas que vivem em situação de pobreza e exclusão e que tenham coragem de mudar, evoluindo na busca de assumir nossas convicções com independência e humildade”; princípios da já citada ONG ActionAid. Dessa forma, iluminemos o presente para fazer brilhar o futuro; consideremos que o amor é muito mais que uma simples paixão, muito mais que apenas olhar para o seu próprio umbigo; enxerguemos que no horizonte também se encontra o próximo; um ser vivo, humano ou não, o qual é nosso irmão. Que o amor prevaleça muito além de 40 anos e nos faça criaturas benévolas com o ímpeto de disseminar a semente do afeto e da fraternidadeIsso tem nome: amor.



Referências


CARTAXO, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa, Ed. do CCTA, 2015.

GOODSON, Ivor F. Historias de vida del profesorado. Barcelona: Octaedro, 2004.


https://combateafome.org.br/


quinta-feira, 30 de junho de 2022

Amor e pós-modernidade

 


Amor e pós-modernidade

Carlos Cartaxo

 

Ao caminhar com um amigo, um vizinho, sempre conversamos sobre uma pauta de assuntos variados. Certo dia ele teceu um comentário sobre arte e, como é natural, fez severas críticas sobre o que não conhece. Quem já cruzou além de suas fronteiras e viaja, pelo menos, através da leitura, consegue expandir o nível cultural e, consequentemente, sua visão universal; expande sua formação intelectual e amplia a compleição de ser e de viver, além de fomentar visões ampliadas do mundo que nos cerca. Se ele aumentasse sua amplitude de leitura, evitaria cometer gafes e estaria habilitado para uma prosa sobre vários gêneros de trabalhos criativos, evitando que certas expressões artísticas fossem tratadas de forma abjeta.

Quando era professor de arte, por vezes, presenciei conversas entre colegas sobre metodologias e ensino de arte; em vários momentos constatei que, mesmo no meio de educadores, havia pouco ou limitado conhecimento sobre história da arte, o que é muito grave! Apesar dessa área exprimir a história da própria humanidade; o inusitado é a constatação de que ainda se conhece muito pouco sobre a arte enquanto expressão humana. Essa corroboração me levou a escrever livros sobre o tema, que listo em ordem cronológica: 1) O Ensino das Artes Cênicas na Escola Fundamental e Média, 2001; 2) Teatro de Atitudes, 2005; 3) Teatro Determinado, 2009; 4) Geraldeando, 2010; 5) Amor invisível: artes e possibilidades narrativas, 2015. Eu escrevi outros livros importantes como o romance A família Canuto e a luta camponesa na Amazônia, 1999, agraciado com o Prêmio Jabuti de Literatura, e o livro de contos Contatos, 2014. Eu também participei de seis outros livros que são coletâneas de contos e dois livros técnicos, um sobre teatro-educação e outro sobre arte-educação.


Como mergulhador do universo cultural, tenho a rotina de ler sobre o tema; portanto, para não me perder em teorias, sempre sou estimulado a revisitar leituras, pois esse procedimento é um ato que nós deveríamos fazer, afinal, a segunda leitura de uma obra sempre acrescenta algo com relação à primeira. Eu raramente leio os livros que já publiquei, todavia, com base na necessidade do debate sobre arte resolvi fazer uma releitura e publicar, nesse texto, fragmentos do meu livro Amor invisível — artes e possibilidades narrativas, de 556 páginas, resultado do meu doutorado na Universidade de Barcelona, na Espanha. É importante registrar que esse livro é um romance; portanto é o resultado de uma atividade acadêmica cujo produto final é algo menos burocrático e de leitura mais prazerosa, principalmente para quem não é familiarizado com explorações literárias complexas, natural no seio dos espaços universitários.

Será que um romance pode ser uma tese de doutorado? É claro que, para muitos acadêmicos ortodoxos, não pode. Eu fui à contramão dessa concepção e escrevi uma tese que é um romance ou um romance que é uma tese. Afirmar que um trabalho final de doutorado é um romance que causa certa resistência e rejeição naqueles que veem a academia como uma redoma para poucos; por esse motivo resolvi tratar um tema complexo de forma que a narrativa seja usual e identitária com o cotidiano de todos nós.

A juventude e suas aventuras amorosas, assim como os conflitos técnicos e ideológicos sobre a formação do/a professor/a de arte é o tema central do livro citado. Contudo, o que parece simples, de fato, é complexo. Este é um trabalho fundamentado a partir da perspectiva metodológica da investigação baseada nas artes, IBA. É uma história ficcional, mas fundada na trajetória real da pesquisa que a gerou. O enredo de Amor invisível traz no bojo do seu contexto, situações vividas durante a pesquisa, todavia, associado ao conteúdo teórico do ensino de arte, interligando a ficção ao cotidiano real das escolas pesquisadas; no caso é um triângulo amoroso entre um aluno estudioso, uma aluna estudiosa e uma aluna, bonita, que empregava parte de seu tempo escolar na conquista de garotos.

Em vários momentos os leitores se encontrarão no contexto descrito, refletirão sobre suas próprias experiências e, naturalmente, emitirão parecer e crítica sobre o conteúdo retratado. O texto é evocativo. A narrativa foi pensada para provocar ou evocar uma interação do leitor com o próprio texto, possibilitando assim, que este revise sua forma de ser e se coloque como sujeito da própria experiência, uma parte do todo. Como o romance situa o leitor no contexto da história, pode-se afirmar que essa é uma obra de narrativa evocativa.


Com esse trabalho procurei desconstruir o ponto de vista separatista que trata os artistas como criadores e os cientistas como recriadores, reconstrutores e descobridores de coisas novas no mundo. Amor invisível gera conhecimento, recria informações, constrói reflexões e propósitos, reconstrói ideias e conceitos. Nele arte é conteúdo e conhecimento em forma de literatura.

Para aproximar e estimular a leitura dessa obra, eu cito fragmentos do livro Amor Invisível para suscitar o debate. Um dos pontos basilares do romance é a atualização contextual da história da arte. Como o meu amigo citado no início desse artigo só conhecia a arte clássica, portanto, criticada e rejeitava a arte moderna e a pós-moderna, enceto com o personagem Rubens quando conversa com seu filho Renato que quer saber quem é o sujeito pós-moderno. O pai tentar ser claro:

— “A condição pós-moderna representa a dificuldade de pensar, sentir e representar o mundo onde se vive”.

A conversa entre eles avançou sobre a compreensão do significado de condição pós-moderna. Rubens lembra do autor Jair Ferreira Santos.

— “O modernismo considerava a cultura como sendo elevada. Para isso se baseava em conceitos como: arte pura, estetização, originalidade da obra, abstração como determinante na forma, hermetismo e conhecimento superior. Já o pós-modernismo tem como base o cotidiano banalizado, a antiarte, a desestetização, o pastiche como processo, a figuração como conteúdo, a fácil compreensão das obras e a arte como um jogo” (SANTOS, 1986).

Esta iniciação teórica esclarece sobre a necessidade de entendermos que estamos vivendo um momento social, cultural e econômico, não obstante, histórico e artístico, em transformação. É o que Jean-François Lyotard chama condição pós-moderna.  Esse conceito se encontra no romance, tanto nos debates entre professores e professoras, como entre os alunos e alunas nas aulas de arte.

Durante as aulas de arte o aluno Renato e a aplicada Sofia iniciaram um namoro. Já Rafaela, a loira fatal, decidiu conquistar Renato; planejou uma festa e lá o conquistou. O namoro não foi longe. Renato, inesperadamente, a viu na praia com outro em um carro estacionado. Com o tempo, aconteceu uma reaproximação de Sofia e Renato. O casal estava no aeroporto; foram deixar Rubens que partia para defender seu doutorado na Espanha. O imprevisível aconteceu! Lá encontraram Rafaela, que, atenciosamente se, aproximou do casal. “Sofia ficou calma, mas Renato ficou nervoso, receoso do inesperado que poderia acontecer diante de um reencontro das duas. Rafaela vinha só, mas não desviou a rota que caminhava. Renato ficou torcendo para que ela desviasse o caminho, o que não aconteceu. Ao contrário, sorridente, loiríssima, com uma blusa decotada e vestida de calça jeans azul colada ao corpo, ela veio ao encontro do casal. Cumprimentou primeiro Sofia e depois Renato. Alegre, declarou que era um prazer revê-los depois de tanto tempo e de tantas mudanças nas vidas deles. À medida que Rafaela falava, Renato aliviava sua tensão e ficava mais à vontade na conversa. Sofia parecia relaxada e ouvia mais que falava”. Após a conversa, Rafaela, ao se despedir, não resistiu e disse:

─ “Você venceu!

─ Não, o amor venceu ─ educadamente, respondeu Sofia.

Renato, sentindo o clima inesperado da despedida, gelou e ficou inerte, sem saber como proceder.

─ O amor venceu porque o amor é como a arte: é subjetivo. Para muitos, o amor é invisível. O amor existe em torno do ar e se encontra nos corações que melhor sabem pulsar ─ filosofou Sofia pausadamente.

─ Invisível! ─ pensou alto Rafaela.

─ Invisível como muita coisa na sociedade, que se vê, mas não se enxerga ─ completou Renato, sorrindo, tentando descontrair o momento”.

Essa é a trama de Amor Invisível que faz parte da minha vida de escritor e pesquisador. Diante da obra publicada e acessível, só me resta, desejar-lhes uma boa leitura e bons debates.

 

Referências

CARTAXO, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa: Editora do CCTA, 3015.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

As nuances da caridade

                                                                 As nuances da caridade

Carlos Cartaxo

 

               Todo mundo já deve ter ouvido a máxima: sem caridade não há salvação. Qualquer pessoa com um bom nível cultural sabe que as frases padrões, de conhecimento coletivo, podem ter inúmeras interpretações; elas não passam de bordões carregados de valores éticos e morais repetidos que causam um efeito humorístico e até propiciam impressões e sentimentos, o caso da frase criada acima. Pois bem, é baseado nessa assertiva que traço o pensamento de que caridade vai além de dar algo material a outrem. Ser caridoso também é ser solidário e empático.

A luz do dicionário Aurélio, busquei a etimologia para entender a origem da palavra caridade. Parece óbvio afirmar que a palavra caridade, cuja derivação vem do latim "carĭtas.ātis",  significa ternura, amor. Todavia, quando se sai da seara linguística e se vai à religiosidade, caridade passa a ser um ato para salvar a alma. Contudo, ainda há um desvio interpretativo que direciona a caridade para o sentido da doação material, mais conhecida como esmola.

Um dos fundamentos desse texto é o pensamento e o trabalho de Dom Hélder Câmara que costumava citar: “Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro porque os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”. Ele foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB e foi um baluarte na luta contra a ditadura militar no Brasil. Seu compromisso com os mais pobres e com a liberdade levou-o a consagração, tornando-o, em 1952, bispo da igreja católica, por conseguinte, secretário-geral da CNBB. Sua dedicação à igreja católica e ao trabalho pelos pobres o conduziu, a arcebispo de Recife e Olinda, em 1964.

Foto: Folha PE. Do livro “O Dom que vive em nós – Helder Câmara e a igreja no meio do povo”.              

O compromisso de dom Hélder com a caridade, considerando a essência da palavra, me faz lembrar os princípios de visão espiritual, por conseguinte, material que Alan Kardec copilou no Livro dos Espíritos; obra a qual considero ser imprescindível a leitura. Constatei no Instagram a seguinte citação de Allan Kardec: “Não somos responsáveis só pelo mal que fazemos... também somos responsáveis pelo bem que deixamos de fazer”. Pois bem, daí surge à reflexão: será que é necessário, além da caridade material, construir caminhos para não ser necessária a caridade enquanto única solução para a salvação? Ou melhor, será que chegou o momento de redefinir ou reinterpretar o termo caridade? Será que socializar os meios de produção é uma caridade que elimina a miséria e dá a todo ser humana uma condição digna de viver?

Perguntar não ofende, ou ao menos não deveria ofender!

A máxima de que “sem caridade não há salvação” merece uma análise crítica, tendo em vista que a interpretação dada ao léxico que coloca a caridade no patamar de esmola e esmola traz consigo a narrativa de penúria e não de solução. Em uma interpretação pouco ortodoxa, deduzo que a caridade pode ser adotada como uma ação, cuja narrativa é romântica, que conduz ao entendimento passado, durante a idade média, em que a igreja católica colocou a venda a indulgência que significava pagamento pelo perdão espiritual dos pecados cometidos. É evidente que essa análise deve gerar indignação em muitos cristãos,  principalmente aqueles que veem à caridade como a uma ação reparadora que leva a salvação, embora seja paliativa.

O padre Júlio Lancellotti que trabalha com pessoas em situação de rua em São Paulo tem sido criticado pela sua escolha evangélica de se voltar as comunidades mais vulneráveis como os refugiados, a população LGBTQIA+, aos portadores de HIV e a população carcerária, além dos, já citados, que moram ao relento nas ruas da maior cidade do país. Muitos, ditos cidadãos e cidadãs de bem, não reconhecem a prática solidária do padre Júlio como sendo cristã, mas como comunista. Aqui merece a ressalva: será que Cristo era comunista ao fazer opção pelos pobres e desvalidos?

Foto Hora do Povo. O Papa pede para que Júlio Lancellotti continue em defesa dos pobres.

Nesse caso é inevitável, a abordagem crítica: será que Jesus Cristo, no patamar de sua riqueza espiritual, proferiria a caridade apenas como ação paliativa? A de se convir que no estágio de sua sabedoria e sua sensibilidade humana, certamente, caridade significa muito mais que dar uma esmola; expressa dar a mão para levantar o irmão/irmã e propiciar condições para continuar a caminhada fazendo com que o próximo siga evoluindo e superando as injustiças sociais, por conseguinte, sobrevivendo dignamente com qualidade de vida.

A questão de número 806 do Livro dos Espíritos é: É Lei da Natureza a desigualdade das condições sociais? Resposta: “Não; é obra do homem e não de Deus.” A questão de número 807 diz: que se deve pensar dos que abusam da superioridade de suas posições sociais, para, em proveito próprio, oprimir os fracos? Resposta: “Merecem anátema! Ai deles! Serão, a seu turno, oprimidos: re[1]nascerão numa existência em que terão de sofrer tudo o que tiverem feito sofrer aos outros.” Será a Lei do Retorno?  Essa questão nos remete a outra: será que ao fazer caridade se está fortalecendo a hegemonia da opressão?

É bom lembrar que muitos fazem guerra, matam milhares de pessoas e depois vem reparar fazendo doações. O golpe militar de 1964, no Brasil, com apoio dos Estados Unidos da América, implantou uma ditadura em que milhares de vidas foram ceifadas, outras desaparecidas até hoje. Para reparar os danos causados em toda América Latina, que até hoje não foi recomposto porque vidas perdidas não se reparam, os EUA investiram no programa A “Aliança para o Progresso”, criada por Kennedy em 1961 para evitar revoluções e o surgimento de novas Cubas; por conseguinte, destinou cerca de US$ 10 bilhões à América Latina, e concomitante com investimentos privados a cifra em torno de até US$ 20 bilhões. Lembro que no final da década de 60 do século XX, chegava à cidade de  Picuí, Paraíba, leite em pó e outros gêneros alimentícios, fruto desse acordo. Para muitos, aquilo era uma dádiva de Deus para melhorar a alimentação da família; portanto, uma ação caridosa! De fato, era uma realização de política internacional dos EUA apropriada pelos políticos locais.

A literatura, oral ou escrita, expressa a trajetória do ser humano em toda história. Apesar dessa assertiva, abrir o debate sobre a expressão da caridade na literatura, o que primeiro nos surge à mente é a Bíblia. Ratificando a tese desse texto, me refiro a página https://www.bibliaon.com/caridade/ da internet que cita:

Traduções mais antigas da Bíblia muitas vezes usavam a palavra "caridade" para significar "amor". Atualmente, o termo "caridade" é mais usado no sentido de fazer o bem e ser generoso para com os necessitados, algo que a Bíblia encoraja todos os crentes a buscarem (bibliaon.com).

              E cita a abordagem bíblica sobre a caridade:

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram” (Bíblia Sagrada, Mateus 25:34-36).

Com o tempo as interpretações mudam; assim sendo, há evidências que essas alterações se dão de acordo com interesses dos envolvidos. Não obstante a conveniência, mas respeitando as diversas interpretações, concluo esse texto arguindo que caridade vai muito Além de dar esmola e transformar o próximo em um ser “naturalmente” subalterno e oprimido. Fico com a asserção etimológica de que caridade é amor, afeto, ternura e solidariedade. Ser caridoso exige ser empático e construtor da transformação social para que todo/as sejam irmãos na forma de ser e de viver com dignidade.

 

 

Referências

KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Brasília, FEC, 2013.

 

Sítios da internet

https://www.bibliaon.com/caridade/

htpps://www.dicio.com.br/caridade/

htpps://www.folhape.com.br

htpps://www.horadopovo.com.br

https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/dom-helder-camara


terça-feira, 19 de abril de 2022

Lições de Carolina Maria de Jesus

                                                 Lições de Carolina Maria de Jesus

Carlos Cartaxo

Resistir é preciso! Já faz um bom tempo em que eu reluto escrever sobre a fome porque o bom mesmo é escrever sobre coisas boas e a fome não se encaixa nesse escopo do que é magnânimo. Mas, minha determinação por lutar por uma vida digna, justa e igualitária para todos, alimentou minha resistência e me deu coragem para escrever sobre o livro Quarto de despejo, livro de Carolina Maria de Jesus, cuja primeira edição data de 1960. A lógica nos diz ser um livro antigo sobre favela e pobreza; mas, como não existe antiguidade na arte, me dou o prazer de escrever sobre essa preta, favelada, que mesmo quando não tinha o que comer se denominava poetisa e escritora.

Eu passei dias me perguntando como era que eu não conhecia o livro “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus e sua obra na totalidade. Mas, como o tempo é senhor do destino, chegou o momento de conhecê-la e partilhar com meus leitores as impressões dela como escritora, pobre, favelada, de conviver cotidianamente com a miséria. Quando conheci os “Miseráveis” de Vitor Hugo fiquei chocado e, em simultâneo, encantado com a humanidade daquela obra de arte; com Carolina de Jesus fui além, fiquei inebriado com tanto talento, conhecimento e sensibilidade. Essa enxurrada de sensações me fez publicar esse artigo para soltar ao vento toda impressão que trago da literatura dessa mulher guerreira e brilhante.

Foto: IMS Paulista, Internet.

A opção é evitar um tratado literário sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, até porque já existem excelentes artigos sobre o tema; mas, fazer uma viagem afetiva e emotiva sobre as passagens que o livro impactou em mim. Em 1958, quando Carolina escrevia seu livro na metrópole paulista, minha mãe e meu pai saíram da Paraíba para irem ganhar a vida em são Paulo. Fui gerado lá e meus pais retornaram à Paraíba, em 1959, de onde vim nascer em Picuí. Só agora encontrei uma real relação entre a obra e vida de Carolina Maria de Jesus e minha pessoa.

Aqui faço recortes da obra citada de Carolina Maria de Jesus. São passagens que além do significado literário e social, têm identidade com minha concepção ideológica. A intenção é provocar empatia e consequente interesse para a leitura dessa grande mulher. As citações mantêm a autenticidade da escrita do livro. Vejam alguns fragmentos do livro Quarto de Despejo:

 “...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças” (JESUS, 2014, p. 32).

O fato de ser mãe solteira pobre fez de Carolina de Jesus uma protetora da sua sofrida prole. Ela fez questão de registrar o apego maternal à seus dois filhos e a sua filha, e o impacto que a fome provocava nas crianças. A maternidade foi uma condição de vida que Carolina adotou como sendo de luta e sobrevivência. Mesmo enquadrada no contexto subalterno da divisão de classes, sua formação cultural a empoderou na luta por uma vida digna e uma sociedade justa e igualitária.

 “Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar” (JESUS, 2014, p. 32).

“Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: “Tem mais? Esta palavra “tem mais’’ fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais” (JESUS, 2014, p. 41).

“Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida” (JESUS, 2014, p. 60).

“Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: — Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!” (JESUS, 2014, p. 70).

“Quando o João chegou da escola dei-lhe almoço. Depois fomos na cidade. Fomos a pé porque não tinha dinheiro para pagar a condução. Levei uma sacola e ia catando os ferros que encontrava nas ruas. Passamos pela rua da Cantareira. A Vera olhava os queijos e engulia as salivas” (JESUS, 2014, p. 119).

“Como é horrivel ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia” (JESUS, 2014, p. 158).

Foto: autor desconhecido. Internet

A obra de Carolina de Jesus traz sua face solidária; demonstra que ela sempre foi crítica; mas, também expõe seu lado de reciprocidade para com as dificuldades da sua comunidade. Todas as suas ações foram críticas, demonstrando sua força como mulher pobre e preta consciente do seu papel social.

 “Preparei a refeição para os filhos e fui lavar roupas. Quem estava no rio era a Dorça e uma nortista que dizia que a nora estava em trabalho de parto. Há treis dias. E não conseguia hospital. Chamaram a Radio Patrulha para interná-la e ainda não havia dado solução. A velha dizia: — São Paulo não presta. Se fosse no Norte era só chamar uma mulher, e pronto. — Mas a senhora não está no Norte. Precisa providenciar hospital para a mulher” ((JESUS, 2014, p. 153).

Falar de fome me entristece; escrever sobre o tema também. Mas me parece covardia dá as costas para uma realidade que assola milhões de pessoas no Brasil e pelo mundo afora. Então, encaro esse debate e volto a citar a narrativa de Carolina sobre o sofrimento de sua família sem ter o que comer. O domingo é o dia do desespero para ela porque não há o que recolher nas ruas; é um vazio da sua “produção semanal”.

“9 DE AGOSTO. Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo” (JESUS, 2014, p. 120).

O discurso da meritocracia de que pobre não estuda porque não quer e o argumento de que as pessoas pobres não querem trabalhar, além da afirmação de que pobre é preguiçoso, vem abaixo quando ouvimos de Carolina:

 “...Comecei queixar para a Dona Maria das Coelhas que o que eu ganho não dá para tratar os meus filhos. Eles não tem roupas nem o que calçar. E eu não paro um minuto. Cato tudo que se pode vender e a miséria continua firme ao meu lado. Ela disse-me que já está com nojo da vida. Ouvi seus lamentos em silêncio. E disse-lhe: — Nós já estamos predestinados a morrer de fome!” (JESUS, 2014, p. 161).

O fato de ser uma leitora compulsiva a tornava uma mulher bem informada e crítica quanto à política e suas nuances de poder. Ela, por exemplo, não perdia a oportunidade de verberar os políticos e suas práticas demagógicas.

“...Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (JESUS, 2014, p. 42).

“...Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria” (JESUS, 2014, p. 67).

“...Fui na sapataria retirar os papéis. Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade” (JESUS, 2014, p. 120).

Foto: El Pais. Internet.

Viver em um contexto de miséria e pobreza significa conviver com mazelas de toda natureza; da violência a apropriação indébita; da depressão a vulnerabilidade das doenças; da promiscuidade a loucura; da penúria ao suicídio.

“Fui catar papel. Estava indisposta. O povo da rua percebe quando eu estou triste. Ganhei 36,00. Voltei. Não conversei com ninguém. Estou sem ação com a vida. Começo achar a minha vida insipida e longa demais. Hoje o sol não saiu. O dia está triste igual a minha alma” (JESUS, 2014, p. 99).

“...Tem dia que eu invejo a vida das aves. Eu ando tão nervosa que estou com medo de ficar louca” (JESUS, 2014, p. 130).

A busca e o encontro da leitura fez de Carolina Maria de Jesus uma mulher a frente de seu tempo, uma artista sensível e culta. Ela escreveu vários gêneros literários e deixou uma obra brilhante para a eternidade. Viu e viveu a cultura circense, fez da poesia a expressão do seu sofrimento e da sua escrita cotidiana a narrativa do povo subalterno das favelas. Foi vítima do racismo e da injúria racial em toda sua trajetória de vida, componente registrado nos seus escritos com propriedade e essência literária. Procurou artistas, produtoras e editoras, mas, como a maioria que tenta publicar seus escritos, encontrou muitas portas fechadas porque fazer arte é difícil; mas, entrar no mercado de arte é uma tarefa quase infausta, além de complexa, para uma mulher preta, mãe solteira, pobre e favela. É quase impossível sair do sonho de se tornar uma escritora reconhecida pela crítica e pelo mercado editorial; mas, ela, como brasileira de fibra e luta, não desistiu nunca.

 “...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: —É pena você ser preta” (JESUS, 2014, p. 72).

“...Em 1952 eu procurava ingressar na Vera Cruz e fui no Juizado falar com o Dr. Nascimento se havia possibilidade de internar os meus filhos. Ele disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorisada ouvindo um Juiz dizer isto” (JESUS, 2014, p. 98-99).

Algumas narrativas de Carolina me tocam profundamente, todavia essas com que finalizo esse artigo me emocionam sempre que as leio porque constroem uma narrativa autêntica e real da população sofrida brasileira.

“15 DE JULHO. Hoje é o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu não posso fazer uma festinha porque isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos. Hoje não vai ter almoço. Só jantar” (JESUS, 2014, p. 104).

“Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome” (JESUS, 2014, p. 111-112).

“28 DE JULHO ...Deixei o João e levei só a Vera e o José Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de suicidar. Hoje em dia quem nasce e suporta a vida até a morte deve ser considerado herói (...)” (JESUS, 2014, p. 114).

“Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje completa 10 anos. E eu apenas posso dar-lhe os parabéns, porque hoje nem sei se vamos comer” (JESUS, 2014, p. 118-119).

“Ontem comemos mal. E hoje pior ... Já faz tanto tempo que estou no mundo que eu estou enjoando de viver. Também, com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?” (JESUS, 2014, p. 135).

“Eu estou triste porque não tenho nada para comer. Não sei como havemos de fazer. Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa fome” (JESUS, 2014, p. 146).

“Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome” (JESUS, 2014, p. 183).

 

Foto: Editora Malê. Internet.

Referência

JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2014.