As nuances da caridade
Carlos Cartaxo
Todo mundo já deve ter ouvido a máxima: sem caridade não há salvação. Qualquer pessoa com um bom nível cultural sabe que as frases padrões, de conhecimento coletivo, podem ter inúmeras interpretações; elas não passam de bordões carregados de valores éticos e morais repetidos que causam um efeito humorístico e até propiciam impressões e sentimentos, o caso da frase criada acima. Pois bem, é baseado nessa assertiva que traço o pensamento de que caridade vai além de dar algo material a outrem. Ser caridoso também é ser solidário e empático.
A luz do dicionário Aurélio, busquei a etimologia para entender a origem da palavra caridade. Parece óbvio afirmar que a palavra caridade, cuja derivação vem do latim "carĭtas.ātis", significa ternura, amor. Todavia, quando se sai da seara linguística e se vai à religiosidade, caridade passa a ser um ato para salvar a alma. Contudo, ainda há um desvio interpretativo que direciona a caridade para o sentido da doação material, mais conhecida como esmola.
Um dos fundamentos desse texto é o pensamento e o trabalho de Dom Hélder Câmara que costumava citar: “Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro porque os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”. Ele foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil — CNBB e foi um baluarte na luta contra a ditadura militar no Brasil. Seu compromisso com os mais pobres e com a liberdade levou-o a consagração, tornando-o, em 1952, bispo da igreja católica, por conseguinte, secretário-geral da CNBB. Sua dedicação à igreja católica e ao trabalho pelos pobres o conduziu, a arcebispo de Recife e Olinda, em 1964.
Foto: Folha PE. Do livro “O Dom que vive em nós – Helder Câmara e a igreja no meio do povo”.
O compromisso de dom Hélder com a caridade, considerando a essência da palavra, me faz lembrar os princípios de visão espiritual, por conseguinte, material que Alan Kardec copilou no Livro dos Espíritos; obra a qual considero ser imprescindível a leitura. Constatei no Instagram a seguinte citação de Allan Kardec: “Não somos responsáveis só pelo mal que fazemos... também somos responsáveis pelo bem que deixamos de fazer”. Pois bem, daí surge à reflexão: será que é necessário, além da caridade material, construir caminhos para não ser necessária a caridade enquanto única solução para a salvação? Ou melhor, será que chegou o momento de redefinir ou reinterpretar o termo caridade? Será que socializar os meios de produção é uma caridade que elimina a miséria e dá a todo ser humana uma condição digna de viver?
Perguntar não ofende, ou ao menos não deveria ofender!
A máxima de que “sem caridade não há salvação” merece uma análise crítica, tendo em vista que a interpretação dada ao léxico que coloca a caridade no patamar de esmola e esmola traz consigo a narrativa de penúria e não de solução. Em uma interpretação pouco ortodoxa, deduzo que a caridade pode ser adotada como uma ação, cuja narrativa é romântica, que conduz ao entendimento passado, durante a idade média, em que a igreja católica colocou a venda a indulgência que significava pagamento pelo perdão espiritual dos pecados cometidos. É evidente que essa análise deve gerar indignação em muitos cristãos, principalmente aqueles que veem à caridade como a uma ação reparadora que leva a salvação, embora seja paliativa.
O padre Júlio Lancellotti que trabalha com pessoas em situação de rua em São Paulo tem sido criticado pela sua escolha evangélica de se voltar as comunidades mais vulneráveis como os refugiados, a população LGBTQIA+, aos portadores de HIV e a população carcerária, além dos, já citados, que moram ao relento nas ruas da maior cidade do país. Muitos, ditos cidadãos e cidadãs de bem, não reconhecem a prática solidária do padre Júlio como sendo cristã, mas como comunista. Aqui merece a ressalva: será que Cristo era comunista ao fazer opção pelos pobres e desvalidos?
Foto Hora do Povo. O Papa pede para que Júlio Lancellotti continue em defesa dos pobres.
Nesse caso é inevitável, a abordagem crítica: será que Jesus Cristo, no patamar de sua riqueza espiritual, proferiria a caridade apenas como ação paliativa? A de se convir que no estágio de sua sabedoria e sua sensibilidade humana, certamente, caridade significa muito mais que dar uma esmola; expressa dar a mão para levantar o irmão/irmã e propiciar condições para continuar a caminhada fazendo com que o próximo siga evoluindo e superando as injustiças sociais, por conseguinte, sobrevivendo dignamente com qualidade de vida.
A questão de número 806 do Livro dos Espíritos é: É Lei da Natureza a desigualdade das condições sociais? Resposta: “Não; é obra do homem e não de Deus.” A questão de número 807 diz: que se deve pensar dos que abusam da superioridade de suas posições sociais, para, em proveito próprio, oprimir os fracos? Resposta: “Merecem anátema! Ai deles! Serão, a seu turno, oprimidos: re[1]nascerão numa existência em que terão de sofrer tudo o que tiverem feito sofrer aos outros.” Será a Lei do Retorno? Essa questão nos remete a outra: será que ao fazer caridade se está fortalecendo a hegemonia da opressão?
É bom lembrar que muitos fazem guerra, matam milhares de pessoas e depois
vem reparar fazendo doações. O golpe militar de 1964, no Brasil, com apoio dos
Estados Unidos da América, implantou uma ditadura em que milhares de vidas
foram ceifadas, outras desaparecidas até hoje. Para reparar os danos causados
em toda América Latina, que até hoje não foi recomposto porque vidas perdidas
não se reparam, os EUA investiram no programa
A “Aliança para o Progresso”, criada por Kennedy
em 1961 para evitar revoluções e o surgimento de novas Cubas; por conseguinte,
destinou cerca de US$ 10 bilhões à América Latina, e concomitante com
investimentos privados a cifra em torno de até US$ 20 bilhões. Lembro que no
final da década de 60 do século XX, chegava à cidade de Picuí, Paraíba, leite em pó e
outros gêneros alimentícios, fruto desse acordo. Para muitos, aquilo era uma
dádiva de Deus para melhorar a alimentação da família; portanto, uma ação
caridosa! De fato, era uma realização de política internacional dos EUA
apropriada pelos políticos locais.
A literatura, oral ou escrita, expressa a trajetória do ser humano em toda história. Apesar dessa assertiva, abrir o debate sobre a expressão da caridade na literatura, o que primeiro nos surge à mente é a Bíblia. Ratificando a tese desse texto, me refiro a página https://www.bibliaon.com/caridade/ da internet que cita:
Traduções mais antigas da Bíblia muitas vezes usavam a palavra "caridade" para significar "amor". Atualmente, o termo "caridade" é mais usado no sentido de fazer o bem e ser generoso para com os necessitados, algo que a Bíblia encoraja todos os crentes a buscarem (bibliaon.com).
E cita a abordagem bíblica sobre a caridade:
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram” (Bíblia Sagrada, Mateus 25:34-36).
Com o tempo as interpretações mudam; assim sendo, há evidências que essas alterações se dão de acordo com interesses dos envolvidos. Não obstante a conveniência, mas respeitando as diversas interpretações, concluo esse texto arguindo que caridade vai muito Além de dar esmola e transformar o próximo em um ser “naturalmente” subalterno e oprimido. Fico com a asserção etimológica de que caridade é amor, afeto, ternura e solidariedade. Ser caridoso exige ser empático e construtor da transformação social para que todo/as sejam irmãos na forma de ser e de viver com dignidade.
Referências
KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. Brasília, FEC, 2013.
Sítios da internet
https://www.bibliaon.com/caridade/
htpps://www.dicio.com.br/caridade/
htpps://www.folhape.com.br
htpps://www.horadopovo.com.br
https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/dom-helder-camara
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