O amor além de 40 anos
Carlos Cartaxo
Nesse momento em que o Brasil volta ao mapa da fome, eu completo quarenta anos de formado como engenheiro mecânico, olhando para trás, enxergando onde estou, e, a espera de um futuro baseado em um presente que, apesar dos espinhos e percalços, tem o aroma de flores que exalam uma história de vida florida, sem medo de erra, com amor. Da minha turma de formandos, todos fizeram carreia profissional que é motivo de orgulho. Essa grupo de jovens senhores está bem e, felizmente, contando belas histórias de vidas. Lembro que histórias de vidas é uma área do conhecimento que trato no meu livro “Amor invisível: artes e possibilidades narrativas”, resultado da minha tese de doutorado. Esse tema foi fonte de pesquisa do inglês Ivor F. Goodson e despertou em mim a necessidade de seguir essa vereda para encontrar a construção do conhecimento em meus pares e em mim mesmo.
Não obstante, esses avanços pessoais, olho para meu entorno e vejo que há muito o que fazer pelo próximo que está escondido pela invisibilidade das diferenças sociais. Segundo a ActionAid, através do seu programa de combate a fome no Brasil: “A fome dobrou nas famílias com crianças de até 10 anos de idade, entre 2020 e 2022. E o número total de pessoas que passam fome superou os 33 milhões. Uma piora absurda em um cenário que já era inaceitável”. Eu não gostaria de escrever sobre esse tema; contudo, vivemos um momento em que se faz necessário refletir, analisar e criticar a situação a qual o povo brasileiro está imerso.
É assertivo afirmar que a fome tem lugar, classe social, gênero e cor. Essa é uma condição instituída em todo o mundo; todavia, olho para o arrabalde e vejo meu povo humilde mergulhado em uma condição social deplorável; e, eu, como cristão, não posso me eximir de debater o tema. Inicio identificando minha infância pobre e o ingresso, como estudante, na Universidade Federal da Paraíba. Olho a história e identifico a minha turma de engenharia na UFPB, jovens de vários matizes que tiveram acesso a uma universidade pública e gratuita e construíram admirável carreira profissional e pessoal. Essa história deve ser a evolução social e profissional de todo jovem brasileiro em detrimento de sua classe social.
Fonte: Arquivo/Agência Brasil
Em homenagem aos 40 anos de graduados, escrevi o texto abaixo, em forma de conto, para resgatar, mesmo que nostalgicamente, a trajetória dos jovens engenheiros, hoje senhores aposentados ou em fase de aposentadoria. Vejamos:
“Quando amanheço, sem pão e sem trabalho, vendo no meu agasalho, os remendos de outra cor”; com essa música de Linda Batista, a mãe sempre entoava essa canção para o filho quando o colocava no colo. A frase sem pão e sem trabalho ficou no inconsciente do garoto, por incrível que pareça, até a fase da sua juventude, e, com ela, cresceu e se tornou homem e profissional da engenharia e da educação.
Como era de praxe, sempre que a mãe apresentava o filho para alguém, demonstrava alegria e orgulho, e, perguntava:
— Meu filho, quando crescer vai ser o quê?
Ele sempre queria ser médico, professor, policial, enfim, a resposta dependia do momento e circunstância, de acordo com o universo infantil. Esse foi mais um lexema que ficou gravado e seguiu as mutações fisiológicas e intelectuais do rapaz. Na adolescência, ele ouvia “Amanhã vai ser outro dia”, cancão de Chico Buarque, metáfora que se reportava ao fim da ditadura militar vigente no Brasil à época e a esperança da consolidação de um país democrata. Nessa fase, ele teve acesso aos conceitos de solidariedade e humanidade que tinham relação direta com os princípios cristãos que o mesmo recebeu quando da infância na igreja católica.
Com esforço e dedicação, ele terminou o ensino médio, digo, o segundo grau, apaixonado pelo conteúdo termodinâmica, da física, o que o motivou a prestar vestibular, depois PSS - Processo Seletivo Seriado, para o curso de Engenharia Mecânica. Essa escolha resultou na aprovação para o referido curso na Universidade Federal da Paraíba em 1978.
Na universidade, pública e gratuita, mais especificamente, a magnífica UFPB, encontrou dezenas de guerreiros, cavaleiros quixoteanos, que empunharam a lança nos estudos com o fim de concretizar o projeto de suas vidas de serem engenheiros. Fora muitas noites acordadas, fins de semanas dedicados aos livros, na sua maioria emprestados, “colas” ou “filas” que reforçavam a segurança para quebrarem os muros das dificuldades didáticas; mais uma vez a solidariedade se fez presente na vida daquele jovem.
Assim, a década de setenta adentrou a década de oitenta do século XX e, mais especificamente em 1982, como uma alvorada que nos traz a luz de um novo dia, aqueles cavaleiros rútilos chegaram ao fim da missão estudantil e se graduaram engenheiros mecânicos.
Como a sensibilidade humana é um alimento subjetivo que é construído ao longo do tempo, aquele jovem, hoje senhor, compreendeu que deveria resgatar os valores, as conquistas, as dificuldades e as alegrias. Sempre lembrava do gingado futebolístico de Cerezo; do sorriso autêntico de Risadinha; do brilho avermelhado no fusquinha de Cici; do representativo e volumoso Buda; dos trejeitos do “índio” Potiguara; do Preto caprichoso que, na sala, só sentava na frente; da paixão incomensurável do galã Paquerador; do sertanejo Andorinha; da tranquilidade de o Gênio; da Pomba que trafegava por pontes, do Pitoresco Nonó do sertão; do Wolvo engenheiro transformista em juiz; do Bornai de Cruz das Armas; do Poeta baienense; do Baixinho invocado sergipano; do Leo grandão; do cientista que se tornou bancário; e do Cachaça que não era alcoólatra. A idade avançou para aquela criança, inicialmente, aqui citada, e, certamente, o presenteou com o esquecimento do apelido de nobres colegas que não foram citados, mas que fazem parte das vidas de todos os que comungaram daqueles momentos.
O tempo abriu caminho e aquele garoto, ou melhor, aqueles garotos, se tornaram sessentões e tiveram a dádiva de completarem quatro décadas de formados; honrosamente, engenheiros mecânicos. São quarenta anos alicerçados em bravuras, conquistas e vitórias. E uma pequena parte da história da UFPB; é o reflexo de uma sociedade que construída com base no conhecimento se fez realidade. Que a história, banhada por nostalgia, faça com que esses engenheiros e seus familiares sejam muito felizes e gratos pela universidade, no caso, a UFPB, e pela sociedade que propiciou condições materiais e pedagógicas para a consolidação do projeto de vida de todos eles.
Que a felicidade os abrace alimentando a gratidão por serem frutos de uma universidade pública, gratuita e de qualidade.
Viva a UFPB!
Viva os engenheiros mecânicos que, na labuta, fazem história.
Fonte: Arquivo dos engenheiros mecânicos, UFPB, 781.
O texto acima, digo conto, é um álibi que ratifica a importância da educação e, em especial, da universidade pública na formação de jovens e na estruturação de um país que consolida oportunidades para todos, efetivando uma sociedade sem pobreza e socialmente justa, onde as pessoas tenham capacidade de criar mudanças para si mesmas, para o próximo e para suas comunidades.
Dentro do meu conceito de que, para sermos felizes, precisamos disseminar o amor, brado, sem medo de ser feliz, que se faz necessário socializar o conhecimento e, evidentemente, oportunidades concretas e reais para que todos, sem exceção de classe social, gênero, cor e origem, entenda-se lugar, galguem patamares evolutivos, que é a missão de todo ser humano na passagem material pelo planeta terra.
É salutar e conveniente que eu conclua esse breve texto desejando abraçar todas as pessoas, gente que, como eu, defende e pensa pela lógica de valores universais como “respeito mútuo, integridade, equidade, justiça e solidariedade com as pessoas que vivem em situação de pobreza e exclusão e que tenham coragem de mudar, evoluindo na busca de assumir nossas convicções com independência e humildade”; princípios da já citada ONG ActionAid. Dessa forma, iluminemos o presente para fazer brilhar o futuro; consideremos que o amor é muito mais que uma simples paixão, muito mais que apenas olhar para o seu próprio umbigo; enxerguemos que no horizonte também se encontra o próximo; um ser vivo, humano ou não, o qual é nosso irmão. Que o amor prevaleça muito além de 40 anos e nos faça criaturas benévolas com o ímpeto de disseminar a semente do afeto e da fraternidade. Isso tem nome: amor.
Referências
CARTAXO, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa, Ed. do CCTA, 2015.
GOODSON, Ivor F. Historias de vida del profesorado. Barcelona: Octaedro, 2004.
https://combateafome.org.br/
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