Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Complexo de grandeza

                                             Complexo de grandeza

Carlos Cartaxo


O mês de junho é marcante para o Nordeste brasileiro por causa das festas juninas que animam a zona rural, passa pelas pequenas cidades e chega à capital; são eventos que fazem parte da identidade cultural do nosso povo. Nos festejos há uma multiplicidade de sentidos, sensações e sabores; é a vida ornamentada de alegria. Muitos causos proliferam, outros dançam, cantam e acendem fogueiras; ações que, no todo, fortalecem as narrativas da cultura popular. Os eventos se multiplicam e alguns fazem uso do superlativo para dar ênfase e qualificar sua festa como a maioral.

O uso do complexo de grandeza vai além da abordagem cultural; por exemplo, se ouve que a maior mata atlântica urbana originária é a mata do buraquinho em Parahyba. O maior São João do mundo fica na cidade de Campina Grande, na Paraíba; já o melhor São João do mundo está em Caruaru, Pernambuco. Em Sergipe se diz que é o país do forró. A maior avenida em linha reta do Brasil é a Caxangá, em Recife, com 6,2 km; corta os bairros da Madalena, Zumbi, Cordeiro, Iputinga, Caxangá e Várzea; também há quem diga que Pernambuco tem a bandeira mais bonita do mundo; da mesma forma, dizem que o carnaval de Olinda é o melhor do mundo.

Os superlativos têm fragilidades e estas geram contrapontos porque daí surgem lendas urbanas. Para que ter a maior mata urbano do Brasil se a mesma mata atlântica está sendo desmatada a poucos quilômetros dali, no litoral paraibano? Para que ter o maior  ou o melhor São João do Mundo se as manifestações da cultura popular existem e são resistentes a festivais de músicas que levam o nome de São João? Para que ter a maior avenida em linha reta do Brasil se o trânsito e a mobilidade urbana são um inferno?

De fato, o complexo de grandeza esconde ruídos na comunicação, mensagens duvidosas, falsas e verídicas, geram mitos que fortalecem a autoestima de muitos; mas, também cria desconfiança, portanto descrédito; chega a ser motivo de chacota e piadas irônicas. A imagem de grandeza pode comunicar uma descrença sobre a possível veracidade e, porque não, passar um sentimento de fragilidade que necessita da suposta sensação de grandeza para fazer valer o subterfúgiu do verdadeiro valor. 

Em contraponto ao complexo de grandeza, indago sobre que parâmetros esses superlativos são propalados para garanti-la como verdade? O ser superlativo corresponde a algo que exprime uma superioridade a outrem, que se enquadra em um grau muito elevado ou mais elevado do que seus correspondentes. Essa abordagem acentua o caráter quando a grandeza passa a ter valor de excelência desqualificando os demais. O complexo de grandeza se desloca do real para se fazer mais importante do que realmente é, mantendo a falsa aparência de que está no patamar do normal, autêntico, logo não ficcional.

O que de fato contribui para a multiplicação do complexo de grandeza? Marketing, lucro, vaidade, prestígio, mentira (“fake news”)? Enfim, parece que o conceito de “achismo” é o que prevalece porque pelo mundo afora se vê tantos eventos e monumentos maravilhosos que caberiam muito bem em um laço de grandiosidade; todavia, ao contrário, o conteúdo e a essência é o que fundamentam a notoriedade e a importância da cidade, da manifestação artística, da personalidade, etc.


     Foto: Carlos Cartaxo

Eu vivenciei alguns momentos que ficaram gravados em meu âmago pela beleza, emoção, conteúdo e importância da cena e, nem por isso, nenhuma dessas situações são frutos de complexo de grandeza. Por exemplo, tive a oportunidade de pegar um trem, com o casal amigo: Penha dos Santos e Erik Van Der Pol, em Lelystad, Países Baixos, também conhecida por aqui de Holanda, com destino a Haarlem, cidade que data do Século X, que tem, além de uma bela arquitetura e história excepcionais, o que me encantou e, por isso, merecia um superlativo foi a igreja gótica de Saint Bavos. É um templo belo, esplendoroso; contudo, a minha visita se tornou memorável quando me deparei com a grandiosidade do órgão, que é um instrumento, simplesmente, lindo e enorme; para complementar, foi lá que, ainda garoto, com apenas 10 anos, Wolfgang Amadeus Mozart tocou, no século XVIII, momento em que este realizava viagens com a família, pela Europa, para fazer concertos. Lá ele tocou irradiando seu talento pelo espaço da feérica arquitetura sacra. Ao fotografar a placa que noticia a passagem ali do prodígio Amadeus, me senti em um estágio de êxtase, fascínio que trago comigo desde que assisti o filme Amadeus; película emblemática sobre o referido ouvido absoluto do virtuose e prodigioso artista. Na igreja gótica de Saint Bavos também tocaram os brilhantes compositores alemães Händel e Felix Mendelssohn.

                                                                Foto: Carlos Cartaxo


As viagens em busca de experiências e conhecimentos artísticos me levaram a Veneza, Itália. Eu tive a oportunidade de vivenciar uma Bienal de Arte de Veneza e fortalecer meu conceito sobre arte moderna e contemporânea, que prefiro denominar pós-moderna. A maioria das pessoas vão a Veneza fazer turismo romântico, o que é admirável. Não obstante, eu fui a busca de arte e de história. Ao dobrar esquinas e caminhar por vielas, ilhas interligadas por charmosas pontes, janelas ornamentadas com flores e detalhes arquitetônicos, cujas belezas eu nunca vira, encontrei uma casa, precisando de restauração é verdade, que tinha uma placa que citava Antonio Vivaldi, dizia: “Esta igreja é obra escolhida pelo arquiteto veneziano Giorgio Massari, sua acústica perfeita, a tradição adora lembrar as intenções brilhantes e os gentis conselhos de Antonio Vivaldi como diretor”. Vivaldi foi sacerdote católico, além de exímio compositor veneziano e intérprete. Aquele momento veneziano, no início do século XXI, me fez viajar no tempo e me situar no final do século XVII, início do século XVIII quando o brilho da música barroca flutuava pelos ares da República de Veneza, hoje Itália. Sob o frio do inverno, solicitei a um desconhecido para registrar aquele momento que, apesar de ser num frio de 7 graus, me punha no seio das quatro estações. 


Outra sensação que arrastou de dentro de mim um grau de emoção indescritível, foi quando, no início da noite fria veneziana, eu voltava de um dia imerso na Bienal de Arte e me vi diante do Teatro Carlo Goldoni. Esse autor, do século XVIII, foi determinante na minha formação de dramaturgo e de intérprete de comédia e peças infantis. Então, mais uma vez, parei e fui tomada por uma carga emotiva. Lembro que o ar gélido não escondeu a lágrima que insistia brotar dos olhos que não acreditavam no que viam. Entre o século XVIII de Goldoni e o meu Século XXI, muita água passou por baixo das mais de quatrocentas pontes de Veneza.


                                                             Foto; Carlos Cartaxo

Os três momentos citados na escala do tempo e nas minhas andanças, por si só, não são lembrados por força de alguma bandeira retratada por complexo de grandeza; mas, porque eles traduzem parte do meu aprendizado e acrescentam no que concerne a minha formação cultural. 

As cidades encantadoras dos Países Baixos com suas riquezas históricas, culturais e arquitetônicas, assim como Veneza não se consideram as cidades mais importantes do mundo. O fio que tece o complexo de grandeza não costura a riqueza daquelas urbes e daqueles povos. Diante da amplitude cultural que permeia nosso planeta, não vejo motivos para se pautar valores com base em complexos de superioridade; sendo assim, qual o papel dessa deformação, no caso o complexo de grandeza, na composição de uma sociedade desenvolvida?

Há que se voltar à teoria da evolução do pensamento de Vigotski e Piaget para saber até que ponto o complexo de grandeza interfere na formação da criança e, por conseguinte, na estrutura social. Ao meu ver, ações superlativas com intuito marqueteiro só fere a identidade cultural de povos, portanto instaura deformações sociais.

O complexo de superioridade, que nesse texto optei por denominar complexo de grandeza, é uma expressão original de Alfred Adler que objetiva explicar o mecanismo “subconsciente de compensação neurótica” oriundo de significativos sentimentos inferiores. Quando abordamos essa tese pela ótica histórico cultural, concluímos que todas essas afirmações quantitativas de suntuosidade que, principalmente, a indústria cultural e os marqueteiros usam tanto, não passam de sentimentos qualitativos de rejeição social; é inferiorização reprimida. A questão é saber se, de fato, é necessário inferiorizar o outro para justificar a própria grandeza?

A psicologia do indivíduo foi o foco de Alfred Adler. Não obstante, o nosso caso se volta ao coletivo, mais especificamente à afirmação de Identidades culturais; destarte, levanto a tese de que quem expressa complexo de grandeza no universo artístico cultural e empresarial, o faz porque, por trás do lucro, intenta seus sentimentos de inferioridade nos outros que, por conseguinte, se percebem como seres diminutos, possivelmente pelas mesmas razões pelas quais podem ter sido colocados na posição de desterro, isto é, refletem dentro de si a condição inferiorizada de incompetentes, desqualificados, portanto, menores. Em contrapartida, os seres rebaixados não se dão conta de que o reconhecimento não crítico do superlativo fortalece o complexo de grandeza daqueles que se colocam artificialmente na posição de maioral, ratificando o orgulho concomitante com arrogância e petulância.

O propósito de adoção do complexo de grandeza não corresponde a ações ingênuas, muito menos descabidas; tudo é planejado, traçado em detalhes. Não se trata de uma opinião sobeja que valoriza positivamente o que de fato merece legitimidade; mas, de imputar expectativas exageradas com o fim de atingir um grau de grandeza acima dos demais, colocando os outros em posição de inferioridade. As informações quantitativas propaladas não são comprovadas com dados científicos; mas, apenas com superlativo que fortalece, por caminhos enganosos, a vaidade e o orgulho, por conseguinte, estimula um sentimentalismo exacerbado através do falso e/ou dúbio convencimento, gerando um descrédito nas outras ações e realizações. Esse procedimento imputa créditos de domínio sobre a informação que interessa ser divulgada. Sendo assim, o complexo de grandeza Institui fragilidade e desfavor em todos que são párias de concorrência, ferindo a lógica real e criando um mundo irreal, porém crível por muitos, inclusive pelo mercado.

Estudiosos da psicologia tratam esse fator como patologia humana; eu acrescento que também é uma patologia do capital, ou seja, a segunda é derivada da primeira; além de que interfere na identidade de uma comunidade, de um povo. Foi com base nesse conceito que cito, neste artigo, cenários e personagens emblemáticas no mundo que poderiam ser divulgadas de forma superlativa; contudo, não o são porque o foco é estético, o belo e o conteúdo, e não a escala de grandeza. 


Referências

ADLER, Alfred.Práctica y Teoría de La Psicología del Individuo. Buenos Aires: Ed. Paidós, 1958.

https://taniaosanipsicologia.com.br/blog/o-que-e-um-complexo-de-superioridade/