Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Tempo perdido?

               Tempo perdido?

Carlos Cartaxo


O tempo está na vida de todos nós a reger nosso âmago, dando significado às nossas emoções e estimulando os sentidos através da música, da literatura, do cinema, da moda, da visualidade e das memórias compostas durante os anos vividos. Assim, ele dirige o nosso amadurecimento, tendo em vista que por nossas vidas, passaram muitas pessoas, poucos livros, imagens sem legendas em momentos inesquecíveis ou esquecíveis. Enquanto há vida, há oportunidades para retomar situações e fazer com que o tempo perdido possa ser recuperado Seguindo essa lógica, eu descrevo situações em que o tempo carimbou sua marca com o brilho inexorável das auroras desavergonhadas que demarcam nossa forma de ser. 

Eu estava a caminhar na praia quando tive a oportunidade de conhecer Maria, entre ondas e raios solares que irradiavam uma doçura que contrastava com o sal da água do mar. Mulher de uma formosura brilhante; cor de jambo, silhueta de flor, que faz de qualquer pessoa um ser perdido no tempo. Estivemos por mais de uma hora em conversa, superficiais, bobagens desprovidas de sentidos complexos; todavia, na simplicidade que conduz a curiosidades e descobertas. Com alguns minutos de prosa, ela soube que eu sou escritor. Um escritor sem reconhecimento, é verdade; quiçá despretensioso. Considerei que aquela tenha sido a primeira vez que ela conversou frente a frente com um escritor. Algo que poderia ser marcante, porque essa categoria de gente, digamos… intelectual, não fazia parte do universo relacional dela e, apesar disso, a conversa fluiu e não fez diferença alguma pôr, ou não, letras em um papel. Com a expressão natural de quem não pensa o que fala, ela foi taxativa: “eu não gosto de ler, nunca gostei, até tentei muito na faculdade; mas, não gosto mesmo, não entra!” e completou com a pergunta: “o que eu faço para gostar de leitura”? Maria não apreciava mesmo o ato de ler, o que é natural para muita gente. A amizade tomou corpo e no Natal, presenteei-a com um livro meu de contos e, claro, ficou surpresa; o sorriso demonstrava gratidão. Não obstante o presente inusitado, suas mãos seguraram o objeto de papel sem cuidado e, em seu rosto, nenhum entusiasmo, na verdade, um certo desprezo. Até hoje não sei se o presente se tornou um ser abjeto em uma estante ou no fundo de uma caixa empoeirada. Presenteá-la com um livro teria sido Tempo Perdido?

Eu tenho um vizinho que é um militar aposentado; defensor do estado mínimo, costuma argumentar que pobre não gosta de trabalhar. A aposentadoria o deixou ocioso e fortaleceu seu hábito de fofocar; mas, não de ler. Sabe tudo o que acontece no bairro e quando pode triplica a informação. De tanto tomar cervejas, já apresentava uma barriga além da boa forma que, sendo ele um ex-militar deveria se apresentar; pois bem, no seu aniversário eu o presenteei com um livro meu, de contos, Contatos. Lembro que ao presenteá-lo com minha obra autografada, seu olhar parecia perdido no tempo e se transformou em algo indecifrável, vago, disperso entre um funeral e o carnaval. Três anos depois do regalo, descobri que ele não tinha lido um conto sequer. Os sonhos barulhentos com tiros, armas, assassinatos e a procura do poder de outrora, nos anos agora vazios, não provocaram estímulos à leitura. Esse era mais um vizinho que não gostava de ler. Eu poderia considerar Tempo Perdido?



Ela era de uma gentileza inacreditável. Se eu não a conhecesse, certamente não acreditaria existir uma pessoa como aquela. O marido engenheiro era sabido demais. Sabia tanto que era pobre e pensava que era rico ou que o tempo perdido apenas lhe dava o direito de sonhar que era rico. Ela cozinhava muito bem e tinha a gentileza de me convidar para partilhar de alguns momentos familiar, gastronômico e alcoólico. Não sei bem se era minha conversa, a arquitetura diferenciada de minha casa de livros que fez com que o casal sempre me convidasse para a partilha de bons e divertidos momentos. Quando ela aniversariou eu a presenteei com meu livro de contos. Fizeram uma festa com esse meu filho de papel, com direito até a aplausos. Tempo perdido,Três anos depois descobri que ela não leu uma única folha do bendito trabalho por mim escrito.

O convite foi aceito. Fui recebê-la no portão. Primeiro colocamos uma mesa e duas cadeiras e ficamos de frente à praia para ver a lua rasgar o horizonte e tocar nossos corações. O sorriso lindo que encontrei no portão cedia para um olhar penetrante concentrado no infinito, como que pronto para ser flechado por um cupido que estava por chegar. A pouca luz escondia a delicadeza da estampa de seu vestido e deixava as curvas faciais mais femininas. Era a sutileza do desenho da face de uma mulher elegante, algo que há muito eu não desfrutava com uma boa prosa. Entre um copo e outro, a lua deu sinal de vida e nos presenteou com seus primeiros raios. Conversas foram e conversas vieram sobre filmes, livros, arte e um banho de cultura. Como sou um defensor da natureza e contra a poluição, me surpreendi quando ela disse, sob o brilho lunar, que sentia falta de um cigarro. O paradoxo de estar diante de uma mulher esplendorosa; mas, poluidora; me fez um frágil pássaro sedento diante de uma água poluída. Inexorável como a atitude de um verdadeiro ambientalista, meu encanto sumiu como a lua por trás de uma nuvem. Sempre que a vejo me pergunto: o brilho daquela luau foi um tempo perdido?

O francês resolveu se tornar meu vizinho; chegou falando o que ninguém entendia, embora ele demonstrasse conhecer um pouco do idioma português. Aquele sotaque puxado do erre é o que o fazia pouco compreensível. Mas, nos comunicamos bem, afinal somos defensores do meio ambiente e estamos no mesmo campo da compreensão sobre o respeito humano, a empatia, resiliência e o conceito inclusivo de que somos gente, portanto irmãos, pertencentes a uma única raça, a humana. Pois bem, no seu aniversário lá estava minha vizinha gentil e ótima chef gastronômica, com seu respectivo marido e o militar reformado, parceiro de caminhada. Como sempre faço, presenteei o aniversariante com meu livro de contos. Como sou o escritor menos lido no planeta terra, acreditei que daquela vez um estrangeiro poderia ler um livro meu, o que já seria uma grande conquista. Os participantes do aniversário, que já tinham o livro, falaram muito bem de minha pessoa; não obstante, nem uma palavra sobre o trabalho literário que estava sobre a mesa e, por toda a noite, as histórias registradas no papel passaram despercebidas. O amigo francês, aniversariante, fez questão de nos fotografar com o presente. Se ele vai ler eu não sei; contudo, eu sou um homem de fé e, como o escritor menos lido, me pergunto se o tempo foi perdido.

Tenho clareza que a escola tem um papel importante no estímulo à leituras e na formação de leitores; por conseguinte, na constituição de uma sociedade culta e bem informada. Nesse sentido lamento que esses personagens aqui descritos, e os demais adjacentes, nunca tenham tido a oportunidade de ler o livro “Poemas para crianças”, organizado por Hélder Pinheiro, para ter a oportunidade de adentrar no universo poético já na infância e acender a chama que iluminaria, a partir do coração, a sensibilidade para brincar com palavras, imagens e leitura de mundo por toda uma vida. Como parte dessa injeção de ânimo ao universo imaginário, registro aqui a obra de Marisa Lajolo: “Do mundo da leitura para a leitura do mundo”, que, certamente, a maioria de nós não teve a oportunidade de desfrutar quando da passagem pela formação escolar. A autora ratifica a importância do acesso ao universo literário já nas fases iniciais da escola e sugere, inclusive, a convergência da literatura às expressões artísticas quando afirma:

Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para despertar e desenvolver o gosto (quase sempre chamado de hábito) pela leitura, encontram-se a transformação do texto narrativo em roteiro teatral e subsequente encenação; a reprodução, em cartazes ou desenhos, do tema, da história ou de personagens do livro (Lajolo, 1999, p. 70). 


A falta de imersão literária com qualidade na escola, consequentemente, estimulante e motivadora, resulta em uma formação estética fragmentada, para não dizer debilitada. Inclusive com prejuízos para a compreensão estética do que nos é apresentado; principalmente agora que estamos na era da visualidade e da simplificação de informações. É o minimalismo do texto advindo da pouca leitura. Considero que o livro “O belo como categoria estética”, de Álvaro Pina, faz falta na reparação do tempo perdido que meus personagens deixaram esvair pela vida. Aqui cabe bem o argumento de que muitas pessoas veem muito, mas enxergam pouco.



Sempre acreditei que escrever um livro é gerar um filho. Um ato tão complexo que foi motivo de um tratado de Schopenhauer, obra intitulada: “A arte de escrever”. Publicá-lo é parir; logo, cada livro que concluo é um filho que irá trilhar por mãos e iluminar, com menos ou mais intensidade, a consciência e o coração das pessoas que os leiam. Assim eu tento driblar o tempo na labuta de escritor. Para complementar essa trajetória construí uma casa com tijolos aparentes que, no meu imaginário, parecem livros sobrepostos. Na cumeeira há um feixe de luz, invisível, um farol direcionado para o mar com o intuito de  alumiar o tempo perdido.


Referências

CARTAXO, Carlos. Contatos: João Pessoa, Editora do CCTA, 2014 

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Editora Ática, 1999.

PINA, Álvaro. O belo como categoria estética. Lisboa: Livros Horizontes, 1982.  

PINHEIRO, Hélder (org). Poemas para crianças: reflexões, experiências, sugestões. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2007.