Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

sábado, 6 de setembro de 2025

Arte erótica

                                                                                    Arte erótica

Carlos Cartaxo


Um colega professor comprou o livro Morangos mofados de Caio Fernando de Abreu e foi surpreendido com o conteúdo que, por conseguinte, causou um impacto negativo, fato que o motivou a oferecer-me o dito livro, tendo em vista que sou um leitor compulsivo. Apesar da primeira edição, da referida obra, ter sido em 1982 pela Editora Brasiliense, eu ainda não tinha lido, a doação foi uma grata surpresa. O colega ao lê-lo não passou da nona página. Li, refleti e entendi o conteúdo da escrita de Caio Fernando de Abreu porque o contextualizei na década de 80, século XX, época de ditadura, luta por direitos civis, liberdade sexual, drogas e, naturalmente, entendi o impacto positivo que o livro teve quando foi lançado. Se o livro for lido pela ótica conservadora se torna uma obra agressiva aos “bons costumes”, principalmente aos valores morais que, em muitos casos, nos é imposto e são reforçados por algumas escolas, religiões e muitos outros grupos. 

            Eu entendo muito pouco de poema, mas, ouso dizer que o livro Ilha perdida de Porcina Furtado, o qual gosto muito, dá à poesia um brilho erótico, garantindo uma narrativa que nos apresenta sensações, desejos e emoções que trazemos no corpo e na mente pelo simples fato de sermos humanos. Contudo, ratifico que Ilha perdida não se olvida de nada, ao contrário, nele me acho e mergulho na sua narrativa que conduz à liberdade e as conquistas femininas. Nesse sentido, resgato a inglesa Mary Wollstonecraft que cobrou dos revolucionários da época que na Declaração dos Direitos do Homem haviam esquecido dos direitos das mulheres; então, ela não fez por menos e, em 1792 escreveu A Vindication of the Rights of Women  (Uma Reivindicação dos Direitos das Mulheres), tema tratado por Dietrich Schwanitz quando afirmou que depois de Wollstonecraft publicar o documento em defesa das mulheres, foi no cerne da questão: “Depois chocou toda Europa insistindo no direito das mulheres à satisfação no coito” (Schwanitz, 2012, pág. 454).

 

Como contraponto vou à história da arte para alicerçar a naturalidade da sexualidade humana e sua expressão através da arte. A leitura dos livros citados suscitou mais uma reflexão sobre arte, sexualidade e erotismo. 

Perguntar é uma forma de aprender e esclarecer: até onde vai o conservadorismo, o desrespeito, a falsa moral, enfim, a rejeição ou aceitação de algo que existiu, existe e existirá, que é o comportamento moral ou amoral da sexualidade humana no contexto social? A avidez deve ser tratada com naturalidade ou com hipocrisia?

Para os desavisados, é importante ressaltar que arte erótica não é pornografia, não é uma expressão explícita de intimidade, de atos ou inconveniências sexuais. A arte erótica, nas suas mais diversas expressões, representa a beleza estética e sentimental, figurativa e simbólica, através da linguagem da arte, que traz consigo reflexões, críticas e projeções identitárias no que concerne à sexualidade sem pudor ou falsa moral.

Um bom exemplo é a perfeição da escultura David de Michelangelo, cujo original está na Galeria da Academia de Belas Artes de Florença, Itália, mas, tem reproduções distribuídas por todo o mundo.


Foto: Léia Lopes, réplica de David de Michelangelo do Instituto Ricardo Brennand, Recife - PE, Brasil.


No universo da arte existem inúmeros exemplos de trabalhos artísticos que, na essência, podem ser considerados arte erótica. Em toda linha do tempo há obras que comprovam que a arte e a sexualidade sempre andaram de mãos dadas, por exemplo, na Capela Sistina há o afresco do Juízo Final, pintura de Michelangelo, onde havia imagens nuas. A história registra particularidades com a informação de que após a morte do pintor, o Papa Pio V, em nome da pureza, ordenou que Daniele Volterra repintasse a referida obra para cobrir as genitálias à vista das personagens existentes no Juízo Final.  

Foto: publicação do G1 a partir do Site do Vaticano


Outro exemplo é o trabalho teatral de Zé Celso no Teatro Oficina, em São Paulo, que sempre teve muita repercussão por suas rupturas e exposições eróticas, inclusive, dividia a sociedade por onde passava. Além de criativo e profundo conhecedor do teatro, Zé Celso criou espetáculos irreverentes, com viés político, crítica social e em defesa de uma sociedade plural, justa e igualitária. Teoricamente ele transitou de Konstantin Stanislavski ao teatro experimental. Por princípio ele sempre foi um diretor polêmico. O artigo “Ponto | Zé Celso e as bananas profanas”, publicado  em: 12/11/2013 | colocava que

A cidade de Araraquara, localizada no interior de São Paulo, nunca irá esquecer o mês de junho de 1995. Naquele mês, o consagrado diretor teatral José Celso Martinez Corrêa voltou à sua cidade natal com seu mais novo trabalho: “Mistérios gozosos”, adaptação de um poema de Oswald de Andrade, “O santeiro do mangue”.

Sem mesuras, nem limites seu trabalho se pautava em ideias que propiciavam montagens que continham altas doses de ironia, sátira, crítica e muitas cenas polêmicas de nús e rompimentos de fronteiras do corpo e, por conseguinte, de gestos e expressões provocantes. Zé Celso foi mestre em trazer a arte erótica para dentro do seus espetáculos fazendo-os fontes de curiosidades de prazeres e de condenações. Soube como ninguém provocar, romper barreiras conservadoras e expor através da arte toda profundidade, aceitável ou não , da sexualidade humana.

Nesse mesmo blog, eu escrevi o artigo A arte na (de) rua de Igor Mitoraj, publicado em maio de 2024, sobre o nu da obra pública desse artista, exposta nas ruas de Barcelona, Espanha. Esse escultor polonês trabalhava com metal e levava suas enormes esculturas das galerias e museus para as ruas. Suas obras sempre impactaram por onde passou. A postagem do meu blog teve centenas de visualizações, o que ratifica a projeção e a aceitabilidade do nu nas obras artísticas, ou como queiramos, da arte erótica.

Foto: Carlos Cartaxo


Também já escrevi no meu blog sobre poetas, as quais eu tenho suas obras, destaco Porcina Furtado que escreve com alma feminina, fineza e leveza erótica, por isso merece voltar a ser citada; então, eu peço licença a autora para publicar aqui seu poema Mata:


A copa das árvores dançava enlouquecida

No jardim de cactos e espinhos

Flores caem pelo chão


A gárgula observa com a mão no queixo

A lua vigia sua chegada

Frida fareja seu cheiro


Arrepio com esse vento leste

Uma taça de vinho sobre a mesa

Os olhos do vento tocam meu corpo


Suas mãos encontraram a mata

Entrava e saia de dentro de mim.

                                              (Furtado, 2021, pág. 83)


Para quem se interessa pelo tema, sugiro ler a Francesa Catherine Millet que, além de escrever a autobiografia A Vida Sexual de Catherine M., lançado em 2001 com sucesso absoluto, pesquisou e escreveu sobre simbologias sexuais na obra do artista catalão Salvador Dali, direcionando a pesquisa às artes plásticas, contudo, com foco no erotismo explícito na obra do artista espanhol. Dali teve uma vida sexual repleta de incongruências, características expressas pela sexualidade onírica representadas na sua consagrada obra surrealista.

Diante da beleza da arte erótica e da amplitude de seus encantos e rejeições, destaco que socialmente nos têm sido imputado o medo como o bicho papão que mudará nossa rota da salvação. O medo tem servido para esconder, forjar e criar barreiras, cujas análises são ancoradas em crendices, comparações, credibilidades, desejos e até prazeres. A doutrina do medo representa valores conservadores, de falsa moral, que surgem como fragmentos de dúvidas quando representadas através da arte erótica, expressão puramente humana. Daí vem a censura, a condenação e o envio direto para o fogo do inferno. Além de estigmas e rótulos, a arte erótica ainda será e, possivelmente, sempre será álibi para sonhos, desejos e fantasias dos humanos, seres portadores da capacidade de pensamento.


Referências

Abreu, Caio Fernando. Morangos mofados.São Paulo, Editora Brasiliense, 2019.

Furtado, Porcina, Ilha Perdida. Cajazeiras: Arribaçã, 2021.

Millet, Catherine. A vida sexual de Catherine M. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.

Schwanitz, Dietrich. Cultura: tudo o que é preciso saber. Alfragide, Portugal, Ed. Leya, 2012.

https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/ponto-ze-celso-e-as-bananas-profanas

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/06/vaticano-quer-proteger-afrescos-de-michelangelo-na-capela-sistina.html