O indígena Brasileiro e os estudos étnico-raciais
Carlos Cartaxo
Que o Brasil é um país miscigenado quase todo mundo sabe; isso não é novidade, praticamente é consenso; basta olhar as pessoas em uma feira livre para nos certificamos dessa assertiva. Essa percepção não é surpresa para ninguém; todavia, a novidade está no fato de que a maioria do/as brasileiro/as conhece muito pouco ou quase nada sobre as etnias da nossa constituição. Por esse motivo, como já citado em outros artigos, nesse mesmo blog, sobre os povos que constituem o mosaico chamado Brasil, ratificamos a informação de que há a obrigatoriedade da disciplina Seminários Étnico-Raciais na educação brasileira, cujo intuito é reparar e abrir um debate sobre a lacuna cultural e histórica existente sobre tema nas instituições voltadas ao ensino e a aprendizagem.
As minhas viagens culturais que realizei com olhar de pesquisador, principalmente as realizadas no Paraguai, anos depois no Peru e, por último, em 2019 ao Chile, foram determinantes para me ver como ser latino-americano, por conseguinte, trabalhar, hoje, com a disciplina Seminários Étnico-Raciais na Universidade Federal da Paraíba e, consequentemente, escrever sobre o tema com apreço e afinco. Essas experiências contribuíram para a compreensão da importância histórica das etnias que constituem a cultura brasileira e a do continente americano.
A existência da tese de que não há neutralidade no ser humano se adéqua bem a questão étnica. Como eu comungo dessa asserção, o que escrevo não poderia diferir; destarte, parto do princípio de que compreender e respeitar as diferenças e os diferentes é o primeiro passo para construirmos uma sociedade igualitária e justa. Se focarmos em Paulo Freire e em Émile Durkheim compreenderemos que o argumento da neutralidade é um elemento para intrujar a defesa de que informar e defender os povos indígenas, no que diz respeito a seus direitos sociais, econômicos e culturais, é papel do processo educativo e dos sujeitos educadores. Muitas ações públicas e privadas que têm conduzido ao longo da história, políticas com o fim trágico de extermínio dos povos indígenas. São quinhentos anos de ações de aniquilamento e descrédito quanto aos genuínos direitos dos povos indígenas na terra do pau-brasil; por conseguinte, apoiar e difundir a resistência desses povos é dever de todos que compõem o mosaico miscigenado que forma o nosso país.
É bom relembrar a história afirmativa de que Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil no início do século XVI, em 1500, e aqui já existia 1.500 povos, falando mais de 1000 línguas indígenas e, em torno de 5 milhões de nativos (BANIWA, 2006, p. 27). Os números falam por si só porque ratificam a existência de grupos étnicos que aqui formavam o mapa geopolítico de povos que coabitam no Brasil e em todas as Américas. Gersem dos Santos Luciano – Baniwa, no livro O indígena brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje esclarece que os linguistas organizaram a estrutura das línguas indígenas do Brasil em três troncos: “Tupi, Macro-Jê e Aruak. Mas existem algumas línguas que não se enquadram em nenhum desses troncos linguísticos” (BANIWA, 2006,p.43). Portanto, a história precisa ratificar que quando os europeus chegaram, no que hoje é Brasil, já existiam povos nativos com organização política, econômica e cultural, o que nos conduz a conclusão de que o Brasil não foi descoberto, mas invadido.
Índia Tabajara. Foto Carlos Cartaxo.
No censo de 2000, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE divulgou existirem no Brasil: 220 povos indígenas, falando 180 línguas, com cerca de 734 mil indivíduos, ou seja, 0,4% da população brasileira. Então, no início da década de 1970 consta que no Brasil havia apenas 250 mil indígenas; passando em 2001 para 734 mil; conclui-se que houve um crescimento significativo; todavia, vale ressaltar que a FUNAI e FUNASA consideram apenas 300 mil índios; isso acontece porque essas entidades contabilizam apenas os indígenas residentes em aldeias, ou seja, negam a ancestralidade daqueles que residem em zonas urbanas.
A tentativa de redução da população indígena no Brasil conduz os sujeitos educadores ao princípio freiriano de que a educação não pode ser neutra porque é o silêncio dos neutros que contribuem para o quadro crítico em que se encontram os povos indígenas brasileiros. Como resistência a essa discriminação e segregação entre indígenas aldeados e não aldeados, o movimento indigenista se organizou, reagiu e se consolidou. Por conseguinte, surgiu a primeira entidade de defesa dos direitos indígenas, a ANAÍ (Associação Nacional de Apoio ao Índio) que nasceu em porto Alegre em 1977. Segundo João Pachedo de Oliveira, e Carlos Augusto da Rocha Freire, “o projeto governamental de “emancipação [das terras] dos índios” contribuiu para acelerar o surgimento de associações em 1978” (OLIVEIRA e FREIRE, 2006, p. 198). Com apoio de ONGS indigenistas como o CIMI — Conselho Indigenista Missionário e o CEDI — Centro Ecumênico de Documentação e Informação, outras associações surgiram e fortaleceram a luta dos povos indígenas brasileiros.
Quando ouvi um palestrante espírita, competente conhecedor da concepção espírita kardecista, proferir sobre a espiritualidade dos nativos, me surpreendi quando ele se referiu aos indígenas como selvagens. Essas expressões são equívocos que ratificam a necessidade de rever conceitos através da educação ético-raciais. “A sociedade não indígena usa expressões e frases sem refletir sobre seu significado, sem pensar no preconceito que estão propagando. Frases como: “porque você não volta pra oca?”, que os indígenas têm que ouvir quase diariamente”. Essa frase acima e outras significativas fazem parte do projeto Mosaico criado por Omara Soares e Tiago Kirixi Munduruku; segundo eles, “Mostrar essas expressões e frases que carregam 521 anos de preconceito, racismo e estereótipos foi o objetivo deste projeto, deste mosaico”.
Diante desse quadro de extermínio em que os indígenas brasileiros foram vítimas, devemos estudar a identidade desses povos através de suas tradições culturais e das diferenças culturais; consequentemente, é imprescindível contextualizar nos conteúdos de dominação colonial; diferenças socioculturais; e preconceito indígena. Um olhar axiológico nos conduz aos fundamentos que teorizam o estudo acadêmico no tema étnico dos indígenas brasileiros. Segundo Ricardo Henriques, na apresentação do livro O indígena brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje:
O impulso pela democratização e afirmação dos direitos humanos na sociedade brasileira atinge fortemente muitas das nossas instituições estatais, atreladas a projetos de estado-nação comprometidos com a anulação das diferenças culturais de grupos subordinados. Neste contexto, as diferenças culturais dos povos indígenas, dos afro-descendentes e de outros povos portadores de identidades específicas foram sistematicamente negadas, compreendidas pelo crivo da inferioridade e, desse modo, fadadas à assimilação pela matriz dominante (BANIWA, p 10).
Quando se fala de racismo é raro enquadrar os povos indígenas do Brasil como vítima dessa abordagem indevida. Há séculos os indígenas também têm sido tratados com racismo, conforme citado acima por um palestrante, o que acende um alerta sobre o preconceito que assola esses povos. No imaginário coletivo da sociedade brasileira, infelizmente, apenas a população preta é considerada vítima de racismo. Todavia, ressalto que os indígenas também sofrem com a discriminação racial, por conseguinte, padecem com o preconceito, fator que orienta os estudos, na área, no sentido de se rever, de forma crítica, esse tratamento indevido. Nesse sentido é necessário que os indígenas sejam incluídos nas pautas antirracista. Afinal, Respeitar os povos indígenas é respeitar a humanidade, nossa história, nosso passado, nosso presente e nosso futuro (ver RÁDIO YANDÊ: Racismo contra os indígenas: do passado para o presente).
A vulnerabilidade que, por séculos, atinge os indígenas foi tratada com zelo e respeito na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por conseguinte, conhecer os parâmetros legais da carta Magna é dever de todos, vejamos:
No Título VIII — Da Ordem Social Capítulo VIII — Dos Índios, cita no
“Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
No “§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
No “§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
No “§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
No “§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescindíveis.
No “§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
No “§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé”.
No “§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º.
No “Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direi[1]tos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
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Ato das disposições constitucionais transitórias
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No “Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A ordem constitucional acima descrita foi assinada por Ulysses Guimarães, em Brasília, na data 05 de outubro de 1988. Não satisfeito com o designo constitucional, o atual governo federal e sua bancada parlamentar que o apoia tem trabalho no sentido de alterar a Constituição Federal aumentando a vulnerabilidade dos povos indígenas.
Referências
Livros
BANIWA, Gersem dos Santos Luciano –. O indígena brasileiro: O que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
CONSTITUICÃO DA REPÚBLICA FDERATIVA DO BRASIL. Brasília, Congresso Nacional, 1988.
OLIVEIRA, João Pachedo de, e FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presença dos indígenas na formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
Páginas da internet
http://obind.eco.br/2020/08/11/radio-yande-racismo-contra-os-indigenas-do-passado-para-o-presente/
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