Educação, etnia e raça.
Carlos Cartaxo
Estamos prestes a iniciar, em vinte de fevereiro, mais um semestre letivo na UFPB; eu continuo a ministrar uma disciplina sobre esse tema. É fato que essa questão tem uma importância ímpar; para ratificar essa assertiva basta observar os índices de violência, os casos cotidianos de racismo expresso pela imprensa e redes sociais, assim como os procedimentos de resistência contra o racismo que se multiplicam pelo Brasil e pelo mundo. É difícil fingir que não ver uma sociedade onde a diferença entre ricos e pobres, negros e brancos, índios e não índios, ciganos e não ciganos, constituem um abismo que parece ser invisível por grande parte da sociedade, principalmente por parte da burguesia que há séculos se beneficia da exploração do ser humano, inclusive, indo de encontro aos preceitos cristãos de solidariedade e amor ao próximo.
A gravidade da questão exige uma abordagem enfática por parte da academia, ou seja, a implementação de uma educação antirracista. Nesse sentido, inicio aqui a exposição de parte do conteúdo que constitui a disciplina Seminários étnico-raciais do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, ministrada por mim. Alguns índices são marcantes, por exemplo, dados do IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstram que as 65,6 mil pessoas assassinadas em 2017, 75,5% eram pretas (negras). Esse índice determina o que se denomina racismo estrutural o que configura como sendo uma população “mais matável” porque representa o alarmante paradigma de 179 mortes por dia.
A professora Gina Vieira, da educação básica do Distrito Federal, é autora do reconhecido projeto “Mulheres Inspiradoras”, citada pelo correio brasiliense, é enfática ao afirmar que:
A estratégia mais efetiva [para combater o racismo] é a educação. O Brasil é um país profundamente racista e que nunca teve uma ação efetiva de reparação. Por anos, houve um esforço sistemático para embranquecer a população. Acreditava-se que a razão do atraso era a presença de pessoas negras. Além disso, tentam apagar o nosso passado escravocrata. Sabe-se muito pouco do que foi a escravidão. Se as pessoas conhecessem a nossa história, dificilmente insistiriam nesse mito de democracia racial. E, para além da educação na escola, é preciso pensar na educação da sociedade como um todo. Se os agentes de polícia, por exemplo, conhecessem essa história, eles repensariam suas abordagens (VIEIRA, Correio Brasiliense, 05/01/2019).
A autora segue afirmando, na referida entrevista, que: "As pessoas falam que os negros reclamam muito. Mas de cada 10, 20 situações racistas que eles vivem, denunciam uma“. Ela continua:
O ganho mais importante dela é o pedagógico. Existe o mito da democracia racial, de que nós não somos um país racista, de que o racismo é velado. Para os negros, ele nunca foi velado, porque acontece diuturnamente. A lei mostrou que o Brasil é, sim, um país racista e precisa de ações efetivas para lidar com isso (VIEIRA, Correio Brasiliense, 05/01/2019).
A legalidade da questão é a primeira abordagem que deve ser amplamente divulgada porque a população não tem conhecimento massivo das nossas leis. Quando se trata de Lei antirracista, divulgá-la é nosso dever; por exemplo, vejamos as leis que regem o tema em pauta:
1) A constituição Federal de 1988 no Art. 3, inciso XLI, diz: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; e no Art. 5, inciso XLI, diz: “A Lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.”
2) O Código Civil, no seu Artigo 140, trata da injúria racial, que significa: injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena para essa infração: detenção, de um a seis meses, ou multa.
O correio Brasiliense na excelente reportagem sobre o tema, em janeiro de 2019, também abordou a questão jurídica que merece ser citada porque define os crimes de racismo:
“Havia o tempo em que os negros eram livres. Então surgiu a escravidão. Depois veio a liberdade. Mas aí brotou o preconceito. Surgiu, assim, um tempo em que discriminar as pessoas por causa da cor da pele era socialmente aceito e, aos olhos da Justiça, apenas uma contravenção penal. Para tentar pôr um fim a isso, há exatos 30 anos, surgiu a Lei de nº 7.716, que define os crimes de racismo” (Correio Brasiliense, 05/01/2019).
A dita Lei 7.716 de 1989 que torna racismo crime cita:
• Art. 1.º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei n.º 9.459, de 15/05/97).
• Art. 3.º Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos. Pena: reclusão de dois a cinco anos.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, obstar a promoção funcional. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• Art. 4.º Negar ou obstar emprego em empresa privada. Pena: reclusão de dois a cinco anos.
• § 1.o Incorre na mesma pena quem, por motivo de discriminação de raça ou de cor, ou práticas resultantes do preconceito de descendência, ou origem nacional ou étnica. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• I - deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• II - impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• III - proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• § 2.o Ficará sujeito às penas de multa e de prestação de serviços à comunidade, incluindo atividades de promoção da igualdade racial, quem, em anúncios ou qualquer outra forma de recrutamento de trabalhadores, exigir aspectos de aparência próprios de raça ou etnia para emprego cujas atividades não justifiquem essas exigências. (Incluído pela Lei n.º 12.288, de 2010).
• Art. 5.º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 6.º Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau. Pena: reclusão de três a cinco anos.
• Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de dezoito anos a pena é agravada de 1/3 (um terço).
• Art. 7.º Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar. Pena: reclusão de três a cinco anos.
• Art. 8.º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 9.º Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 10. Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem, ou estabelecimento com as mesmas finalidades. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 11. Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 12. Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido. Pena: reclusão de um a três anos.
• Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas. Pena: reclusão de dois a quatro anos.
• Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social. Pena: reclusão de dois a quatro anos.
A fala do juiz Fábio Esteves, presidente da Associação dos Magistrados do DF (Amagis-DF), e um dos organizadores do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros, também entrevistado pelo Correio Brasiliense, é emblemática porque afirma que “ainda é necessário avançar na função pedagógica para enfrentar o racismo nas suas mais diversas dimensões: o racismo ideológico, o racismo institucional, a forma como a sociedade é estruturada”. Sua argumentação é significativa e rica de simbologia porque é oriunda de uma autoridade judicial. Ele reitera, com conhecimento de causa, que:
A lei serve como instrumento para que possamos refletir sobre isso. Mas é uma lei que tem só 30 anos. O Brasil viveu 350 anos de escravidão e ela só veio 100 anos depois da abolição. Ela não conseguiu impedir [o racismo]. Ainda tivemos diversos registros envolvendo discriminação (ESTEVES, Correio Brasiliense, 05/01/2019).
O Estatuto da Igualdade Racial também é uma lei importante que deve ser estudada e difundida; foi sancionada em julho de 2010 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como objetivo de "garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica".
A título de informação é importante registrar que A UnB foi a primeira universidade brasileira a adotar, em junho de 2003, cotas raciais. Anos depois, em agosto de 2012, a ex-presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei que estabeleceu as cotas raciais. Prática regular que já era adotada em algumas instituições de ensino com o fim de reservar uma quantidade de vagas em universidades federais para negros e indígenas, proporcional ao número de negros e indígenas na unidade da Federação em que a instituição está instalada. Desde a sua criação, porém, as cotas raciais vêm sendo criticadas por alguns grupos. Entre os críticos está o, agora, presidente da República, Jair Bolsonaro.
Essas conquistas são fruto da resistência negra que vem de muito tempo atrás; é mais antiga do que se imagina, de fato, é secular. A resistência, denominada movimento negro, surgiu de forma clandestina, durante o período da escravidão no Brasil, como resistência a exploração, violência e injustiças praticadas pelos opressores e exploradores do trabalho humano. É importante resgatar a história e lembrar que:
1) O Movimento Liberal Abolicionista surgiu com o propósito de acabar com a escravidão e o comércio de escravos. Esse movimento contribuiu para a promulgação da Lei Áurea em 13 de Maio de 1888, ato encerrou o secular período escravagista.
2) Em 1883 na Província do Ceará, a Assembleia declarou a libertação dos escravos de Fortaleza; e em 25 de março de 1884 todos os escravos do Ceará foram libertos.
Para finalizar, registro dois fatos importantes que merecem destaque porque são pouco conhecidos: 1) Em 20 de novembro é comemorado como o dia da Consciência Negra no Brasil, data da morte de Zumbi dos Palmares; 2) Em 1931 havia o Partido Político Frente Negra Brasileira. Portanto, a luta e as conquistas oriundas do movimento negro são históricas e seculares e merecem nossos aplausos.
Referências
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