Inteligência artificial no contexto da cultura cigana
Carlos Cartaxo
Na minha infância existia uma informação que costuma apavorar a todos quando era veiculada: os ciganos já estão vindo próximos daqui! Essa era a notícia que me apavorava porque tinha uma carga subliminar de perigo. Os adultos trancavam e escondiam seus pertences de valores. As famílias prendiam suas filhas jovens. As crianças eram protegidas para não serem sequestradas. As notícias chegavam com uma carga de informação ameaçadora. Em contrapartida, a polícia nada fazia mesmo sabendo do perigo iminente que se aproximava. Essa informação ficou gravada no inconsciente coletivo com o pior estigma que as comunidades ciganas poderiam representar. Pela lógica cultural difundida, cigano era sinônimo de ladrão! Era como se uma trupe nômade de ladrões perambulavam livremente pelo mundo afora.
Cresci sem entender o porquê dessa lógica acusatória não ser aplicada aos maus empresários, médicos, advogados, enfim a todos os segmentos profissionais que deixavam de lado a ética e agiam com o fim de enriquecer de forma ilícita. A questão não é fazer paralelo de maus segmentos sociais; mas, fazer uma análise comparativa para se perceber que por trás de todo procedimento inescrupuloso há um arcabouço falho quanto a ética, os valores e o respeito. Isso vale para os profissionais liberais, públicos e para os sujeitos étnicos também.
Cresci com essa débil informação. Só com os estudos acadêmicos é que despertei para as composições culturais e seus valores étnicos, o que corresponde a ter cautela, muita cautela quanto se afirma de forma leviana que o povo é preguiçoso, larápio, inculto etc. Este artigo segue a lógica da pesquisa de Grassi porque ele argumenta na sua dissertação que
serão empregados conceitos como hibridismo, identidade nacional e eurocentrismo que juntos formarão os pilares de sustentação desta pesquisa e que também contribuirão efetivamente para transparecer porque ainda hoje existe a perpetuação de uma linguagem preconceituosa e difamatória enraizada no imaginário dos não ciganos em oposição aos ciganos (GIASSI, p.8, 2014).
Após o resgate da minha memória cultural, me deparo com a realidade da IA - Inteligência Artificial fazendo parte do nosso cotidiano demonstrando que pode tratar as culturas tradicionais como o da etnia cigana, negra e indígena, de diversas forma com abordagens surpreendentes, de maneira que a análise crítica se faz necessária para se coibir desvios e abusos preconceituosos e xenófobos.
Os recursos técnicos da inteligência Artificial que conhecemos hoje, teve seu pontapé inicial, em 1956, quando da realização do evento O Projeto de Pesquisa de Verão de Dartmouth sobre Inteligência Artificial que abordou essa área do conhecimento como sendo um novo campo de estudo (DARTMOUTH, 2024). Quase sete décadas se passaram e o quadro, na atualidade, se configura com um avanço tecnológico surpreendente nesse campo de estudo; todavia, o tratamento dado às diferenças econômicas, sociais e culturais continuam a estender-se com intolerância e desrespeito humano. Então, eis a questão: qual a orientação social, política e científica a IA tomará?
Migração
Nunca é demais lembrar que a palavra etnia deriva do grego ethnis, cujo significado é povo; por conseguinte se refere a um grupo de pessoas cuja identidade é constituída por características que têm em comum a história, cultura, língua, valores éticos e morais, gastronomia, elementos estéticos, atividades lúdicas e similitudes físicas. Com essa definição convergimos o artigo para a etnia cigana.
A migração é um fluxo de seres vivos que se deslocam com o fim de encontrar melhores condições de sobrevivência. A migração faz parte da vida humana desde os primórdios da civilização. Estudos demonstram que os ciganos migraram da Ásia para Europa e, posteriormente, para as Américas. Esse fluxo foi resultado de séculos de circulação nômade que construiu laços e traços que resultaram no desenho etnico que nos chegou da cultura cigana. Como completo do livro de Melo Morais Filho, O editor, Eduardo Rodrigues Vianna, esclarece, em pé de página, que
Há três grandes ramos do povo cigano presentes no Brasil: rom, proveniente do leste e do norte da Europa; sinti, cuja origem encontra-se principalmente na Europa Central; e calom, originário de Espanha e Portugal. Nesta edição optamos pelo termo calom, terminado em m, dado pelos dicionários da língua portuguesa que utilizamos para trabalhar, em lugar de calon, tal como consta da grafia do dialeto calom, bastante utilizado por estudiosos da temática cigana (FILHO, p. 9, 2018).
Melo Morais Filho esclarece a pluralidade das denominações ciganas no mundo quando afirmar que
Os ciganos, hordas sem culto, sem asilo e sem lar, rodeando todas as civilizações mas sempre fora delas, chamados na Inglaterra gypsies, na Alemanha zigueuners, na Espanha gitanos, na Itália zigari, na Turquia çingenes, na França bohemiens, e no Brasil, por eles mesmos, calons, 1 têm em sua poesia alguma coisa que deslumbra como as labaredas refletidas da trípode das sibilas,2 e de profundamente impressionável como uma dor eterna (MORAIS FILHO, p. 9, 2018).
O editor, Eduardo Rodrigues Vianna, também afirma que
Na atualidade, a noção de que o povo cigano tem uma origem comum na Índia parece ser a mais aceita. Em 1971 celebrou-se na Inglaterra o primeiro Congresso Mundial Romani; na ocasião adotou-se a bandeira com a tarja superior azul, representando o céu, a tarja inferior, verde, representando a terra, e a roda vermelha com 24 raios, representando a Índia (MORAIS FILHO, p. 10, 2018).
A preocupação quanto ao uso politicamente incorreto da IA no que concerne ao tema em debate, no caso migração, faz todo sentido porque têm antecedentes que nos alertam sobre as possibilidade indevidas, de agressão a etnia cigana, que merecem uma abordagem crítica. Mas uma vez recorro ao editor, Eduardo Rodrigues Vianna, que afirma:
Mais tarde, no séc. XX, o estigma do cigano como um invasor, e como um ente nocivo à nacionalidade, apareceria na Alemanha governada pelos nazistas. Na opinião de Hitler, os ciganos eram uma praga racial, a ser erradicada por meio da esterilização ou do extermínio. Produziu-se um holocausto cigano sob o regime nazista, com 600 mil mortos (MORAIS FILHO, p. 21, 2018).
Se as células neonazistas e o fascismo estão vivos e atuantes, hoje, de forma preconceituosa, xenófoba e violenta, conclui-se que é real a prudência científica quanto ao estudo das possibilidades desse instrumento tecnológico, presente nas nossas vidas, canalizar o ódio no seio da sociedade.
A estética cigana
Os traços estéticos da cultura cigana é vista de norte a sul, de leste a oeste, através do seu falar, vestir, dançar, dos valores morais, gastronômicos e até comerciais. É fato que a identidade cigana, por si só, traduz o belo desse povo; concordância que tem respaldo na fala de Pina “ a unidade e concordância da essência humana historicamente concreta consigo mesma e com natureza é a base objetiva do belo”. (PNA, p. 94, 2018). Diferente do conceito platônico de que o belo deve ser considerado quando causa uma catarse em quem o aprecia; o belo da cultura cigana, assim como de outras etnias, como a indígena, por exemplo, o belo tem um peso semiótico para quem a conduz. Suas cores, seus figurinos, seus ritmos etc, são os signos que definem sua identidade. Então, a forma de se representar expressa na sua imagem exterior que, concomitantemente, traduz o seu conteúdo interior.
As cores fortes são marcantes na identidade cigana. Isso não é o suficiente para traçar um tratado sobre o belo na cultura cigana e, consequentemente, determinar parâmetros para esse conceito. Não obstante, há representação suficiente para dizer, à luz da estética, que há o belo na identidade cigana. Essa etnia tem na forma do vestir, por exemplo, uma imagem simbólica do que lhe é agradável porque traduz sua identidade. Como diz Álvaro Pina, no livro “O belo como categoria estética”, quanto à forma de representação simbólica cigana, “não agrada apenas o objeto, mas também a sua existência” (PINA, p.19, 1982).
O prazer de ser como, de fato, se é, determina a forma e o conteúdo, de fácil identificação, da concepção semiótica da cultura cigana. Essa representação histórica não surgiu a partir de um conceito, mas, de uma história milenar transmitida de gerações para gerações, sem um fator determinante, que não seja sua identidade cultural.
A literatura cigana
O estigma da forma de ser da etnia cigana sofre com interpretações preconceituosas que não condizem com a realidade desse povo. A literatura cigana é vasta; podemos citar, por exemplo, Cancioneiro dos Ciganos de Melo Morais Filho. A fortaleza da cultura dessa etnia é também representada através da literatura. A dissertação de mestrado Olhares Eurocêntricos: a figura do cigano nas narrativas da série O povo cigano no Brasil e das obras Memórias de um Sargento de Milícias e Tocaia Grande: a face obscura de autoria de Reginaldo Paulo Giassi, defendida no Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina, é um referencial de estudo acadêmico sobre o tema em pauta.
Na sua obra, Melo Morais Filho aborda as crenças nas coisas naturais, superstições, a forte relação com o amor e a dramaticidade da literatura cigana. Afirma que “A poesia amorosa, de concepções delicadas e ardentes, engrinaldada de rosas e jacintos, é para o calom um meteoro que luz a furto e desaparece rápido” (MORAIS FILHO, p.15, 2018).
O dia em que não sofro
Eu penso que não sou eu;
Que o meu eu se transformou
Num outro que não é meu.
…
A morte, por ser desgraça,
Não deixa de ser ventura,
Pois corta pelas raízes
Males que a vida não cura.
“Os versos seguintes, comovedores como o vagido dos enjeitados que levam à roda, é o soluçar pungente e agradecido do órfão, que caminha abraçado ao joelho da caridade” (MORAIS FILHO, p.15, 2018):
Perdi minha mãe carinhosa
Que tanto me acarinhava!
Que nos meus males aflita
Chorava quando eu chorava!
Para carpir sua falta
A minha’alma prantos tem!
Felícia, chora comigo,
Era tua mãe também!
Quando perdi minha mãe
Eu julguei de sucumbir,
Agradeço a meu irmão,
Deu-me forças pra sentir.
Dentre os poemas do “Cancioneiro dos Ciganos”, livro de Melo Morais Filho publicamos, do capítulo 4, Espécimes do Dialeto Calom, fragmentos que demonstram a arte da poesia desse povo, páginas 111 e 112.
De um filho ao pai
No dialeto calom:
Ó bato, tu merinhaste,
Tão chinurrão eu fiquei.
Manguella ao Duvel por mença
Que por tuça eu manguinhei.
Tradução livre:
Ó meu pai, tu já morreste,
Tão pequenino eu fiquei.
Suplica por mim a Deus,
Que eu por ti já supliquei.
No dialeto calom:
Quem se cismar nachadon
Não requerde cime dar
Que o ron quidon requerdando
Dinhão dabans a mardar.
Tradução livre:
Quem conhecer-se infeliz
Não fale, esteja calado;
Que o infeliz quando fala
Quase sempre é castigado.
Tradução literal:
Quem se conhecer desgraçado
Não fale, tenha medo
Que ao homem desgraçado falando
Dão pancadas de matar.
Epílogo
Há conclusão? Os estudos sobre Inteligência Artificial no contexto da cultura cigana continuará, assim como com outras etnias, foco da nossa pesquisa, porque é de responsabilidade da universidade brasileira pensar a sociedade como um ente coletivo que deve evoluir de forma progressiva respeitando todos os passos justos e igualitários da dignidade e das diferenças humanas. Portanto, neste momento, não há epílogo; há ganas para o debate e a disseminação da pesquisa.
Referências
Livros
GIASSI, Reginaldo Paulo. Olhares Eurocêntricos: a figura do cigano nas narrativas da série O povo cigano no Brasil e das obras Memórias de um Sargento de Milícias e Tocaia Grande: a face obscura. Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2014.
Cancioneiro dos ciganos.
GRASSI, Ernesto. Arte como Antiarte: a teoria do belo no mundo antigo. São Paulo, Duas Cidade, 1975.
MORAIS FILHO, Melo. Cancioneiro dos Ciganos. Cadernos do Mundo Inteiro, Jundiaí, 2018.
PINA, Álvaro. O belo como categoria estética. Livros Horizonte, Lisboa, 1982.
Páginas de internet
Com didatismo, "Coded Bias" é um "O Dilema das Redes" sobre falhas das IAs.Uol,2021. Disponível em:
https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/10/coded-bias-da-netflix-prova-como-a-tecnologia-e-racista-e-viola-direitos.htm. Acesso em: 05.set.2024.
DARTMOUTH. https://home.dartmouth.edu/, 2024. Inteligência artificial cunhada em Dartmouth. Disponível em https://250.dartmouth.edu/highlights/artificial-intelligence-ai-coined-dartmouth. Acesso em: 05.jan.2024.
Entenda o impacto da Inteligência Artificial na vida da população negra. Mundo Negro, 2024. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/entenda-o-impacto-da-inteligencia-artificial-na-vida-da-populacao-negra/. Acesso em 05.jan.2024.
YOCHABELL, Camilla. A inteligência artificial ajuda, mas quando ela é preconceituosa? Brasil, 18 jul.2022. Linkedin: Cammila Y. Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/intelig%C3%AAncia-artificial-ajuda-mas-quando-ela-%C3%A9-cammila-yochabell
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