Conhecimento, a base dos valores humanos
Carlos Cartaxo
Vejo os 24 anos da ditadura no Brasil reproduzir o arbítrio com a prisão de Lula; vejo e vivo um golpe de Estado do Legislativo, ratificado pelo judiciário; vejo 50 anos do maio de 1968 em Paris; vejo a primavera de praga; 200 anos do nascimento de Karl Marx, tudo isso como uma trilha aberta a se continuar na história. Em contrapartida vejo meus alunos inertes diante do retrocesso que passa o Brasil, inclusive da escalada de ataques ao ensino público e as leis trabalhistas; vejo esses mesmos alunos fazerem de conta que estudam, fazerem de conta de leem; vejo professores de artes, suponho profissionais bem informados e sensíveis, silenciarem diante das reformas retrógradas do ensino do Brasil.
Então, que fazer? Dormir em berço esplêndido? Desacreditar que o ser humano pensa no próximo? Esquecer a força da solidariedade? Deixar de lado a tese de que quanto menor as diferenças de classes mais equilibrada e feliz será a sociedade?
Faço uma revisão de minhas leituras e me vem à mente a peça "Mãe Coragem" de Bertolt Brecht; um libelo as ações devastadoras do Fascismo e do Nazismo na Europa; lembro o quadro "Guernica" de Pablo Picasso, trabalho cubista exposto no Museu Reina Sofia, Madrid, em que o artista expõe sua indignação com o bombardeio à cidade espanhola de Guernica no dia 26 de abril de 1937; recordo a música “Mote do navio” em que o compositor Pedro Osmar, já na primeira estrofe, expressa a força da arte no contexto social: “Lá vem a barca/ Trazendo o povo/ Pra liberdade/ Que se conquista”. É enorme a lista de trabalhos artísticos que têm como base a democracia, a luta contra as desigualdades sociais, a favor dos direitos humanos, contra a escravidão “moderna”, a defesa da justiça social, a valorização da mulher e das culturas. Então por que muitos artistas e criadores se eximem e fogem de produzir uma arte comprometida com os avanços sociais? É a arte pela arte? É o sucesso pelo sucesso? A liquidez dos valores estéticos?
Foto reproduzida da internet
Historicamente existem artistas com trabalhos focados para todas as direções: direita, esquerda, frente, atrás, cima e em baixo. Mas se a arte é uma expressão humana cuja essência é comunicar algo para alguém, por que muitos criadores, nesse processo de emissão e recepção de informações, se isentam da responsabilidade sobre o conteúdo que emitem e expressam artisticamente? Ou, de fato, essas pessoas estão do lado do consumo, da vaidade, da individualidade, do egoísmo e outros valores que se chocam com o avanço da humanidade?
A radiografia do tempo no coloca no final da segunda década do século XXI, terceiro milênio; nesse referencial temporal nos deparamos com muitos retrocessos políticos, sociais e humanitários que estão acontecendo, concomitantemente, em todo o mundo. Nesse contexto me volto à comunidade universitária no Brasil que faz parte da geração complexa e difusa fruto da sociedade líquida, seio da era pós-moderna que desponta no horizonte turvo, tema estudado com propriedade por Zygmunt Bauman no livro Modernidade líquida.
Então me vejo diante de pessoas que leem pouco, que se vão pela onda dos textos rápidos e sucintos das redes sociais. Essa questão da liquidez social e comportamental é tratada por Bauman a partir lógica dicotômica de líquido/sólido e leve/pesado, com o fim de analisar as relações sociais a partir de abordagens que considerem tempo/espaço, individualidade, emancipação, trabalho e sociedade. Esse processo individualiza os sujeitos constituindo uma sociedade de indivíduos, o que acelera a busca desenfreada do consumo tornando essa procura um ritual de incertezas e instabilidades emocionais, sociais e econômicas. A forma física passa a ser mais importante que a energia do abraço. A moda passa a ser um elemento determinante na forma de ser e viver. O comportamento passa a ser reprodutivo e consumista, ou seja, se meu amigo tem uma tatuagem, eu também devo ter. Se ela pintou o cabelo, eu também devo pintar. Se ele fuma, devo fumar. Se aquele artista faz sucesso, mesmo que impulsionado pela mídia que sobrevive a base do consumo, então também devo me tornar seu fã. Essa instabilidade recheada de dúvidas adentra nosso âmago e passa a determinar nossa forma de ser e viver. Em muitos casos essa condição impõe perdas de valores morais e éticos. Sonhar em ter um grande amor é um sonho real que é violado pela busca virtual da pseudo felicidade.
No centro dessa turbulência de ser e não ser shakespeariano, o contexto e o coletivo social deixa de ser a essência da civilidade e o ser humano se desumaniza passando a viver sem pensar o próximo e o todo. Dessa forma o que significa se comunicar sem pensar no receptor das mensagens, mas apenas em si? A resposta é complexa e pode ser argumento para uma tese acadêmica; afinal, o conhecimento é a base estrutural da sociedade porque constitui elementos que formalizam os valores humanos.
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