Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Em tempos de poucos leitores

Em tempos de poucos leitores
Carlos Cartaxo

Uma olhada nas redes sociais é o suficiente para constatarmos que as pessoas não lêem mais, ou melhor, lêem muito pouco. Algumas pessoas, para minha decepção, não lêem nada. Felizmente há aqueles que ainda têm a leitura como parte do seu cotidiano. Lembro que na minha adolescência íamos para o cinema com um livro para lermos em qualquer momento livre, seja na sala de espera, seja no ponto do ônibus. É claro que os tempos são outros; ninguém solta o aparelho celular, e não é para telefonar, mas para acessar as redes sociais. Leitura é algo fora do cotidiano de muita gente. Será que estamos diante de uma geração perdida?
Essa é uma realidade que a gente não pode fugir dela. Todavia, ainda há aqueles, até entre os adolescentes, que têm a leitura como uma escada à aprendizagem, como referência ou imitação da vida. O poeta e/ou escritor se tornou um criador, aquele que cria mundos e suas novas criaturas. Em reverência aos criadores e aos criados escrevo esse artigo com zelo e afinco, tendo em vista que a literatura é a bússola que expressa e traduz épocas.
Eu tenho na cabeceira da cama o livro “Cultura: tudo o que é preciso saber” de Dietrich Schwanitz, edição portuguesa da editora D. Quixote. Dessa obra sempre tiro novas informações, o que me inspira a continuar escrevendo. Esse é um procedimento de constante aprendizagem. É o poço sem fundo, digo o ciclone, de “O mágico de Oz”. Sempre estou descobrindo algo novo e acumulando conhecimentos. Essa busca incessante tem me distanciado de muitos grupos; em contrapartida escrevo aqui o que considero importante para aqueles que constituem o universo pensante.
Quem acompanha o meu trabalho sabe que tenho mais de uma dezena de livros escritos, por mim e alguns em parcerias. Mas, tenho consciência de que o que escrevo é pouco lido; afinal não se trata de sensacionalismo, fofoca ou doutrina que imputa uma verdade absoluta. Escrevo o que de fato, eu acredito; algumas coisas do imaginário ficcional, outras fruto de pesquisas. Como ando mergulhado no universo literário, divido alguns dos meus referenciais com meus leitores. Listo aqui algumas obras literárias que considero importantíssimas para a história e o conhecimento da humanidade. Inicialmente, esse texto que tem como fundamento a obra, já citada, de Dietrich Schwanitz.
 A formação cultural que tive na minha adolescência foi fazendo teatro em Parahyba. Nessa experiência fui apresentado à dramaturgia grega; literatura que me conquistou, me arrebatou da mesmice e me fez um leitor em potencial. Isso já na minha adolescência, porque na minha infância tive pouco acesso à literatura infantil. Então, obras gregas como Lisístrata e As nuvens de Aristófanes; Édipo Rei, Antígona, e Electra primeiras peças de Sófocles que me encantaram; Andrômaca e As Bacantes de Eurípedes, autor que escreveu em torno de 95 tragédias, me influenciaram para a escrita dramática; já as peças de Ésquilo, As suplicantes e Prometeu Acorrentado foram determinantes para minha gana por leitura. Ésquilo é considerado como o fundador do estilo trágico na dramaturgia. Sua obra tem como base a mitologia grega. Sófocles além de dramaturgo introduziu tecnicamente o terceiro ator nas peças, criando assim uma importante inovação do fazer teatral à época.


Quando li Lisístrata me encantei pela profundidade histórica e política que o teatro grego apresenta. Nessa obra de Aristófanes, que data de 411 a.C., encontramos a primeira abordagem literária feminista, cujo foco é sobre greve, ou seja, resistência social. A personagem Lisístrata organizava as mulheres da época para que fizessem greve de sexo quando seus maridos voltassem das guerras porque o resultado daquelas lutas insanas era: 1) dar poder a quem já era poderoso e tinham que manter seu império; e 2) deixar muitas crianças órfãs; e 3) muitas mulheres viúvas.

    
Da literatura grega vou para A Divina Comédia do italiano Dante Alighieri, escrito durante a Idade Média que se tornou público em 1321. Considerada como a mais significativa obra da Idade Média e da literatura italiana, é um trabalho determinante para a formação cultural de todo leitor. Sua base é a cultura da memória, ou seja, a tradição oral porque, na época, a imprensa ainda não existia. Os valores morais eram bem definidos e bem determinados divulgados através da oralidade. Como não poderia ser diferente, Dante trabalhou com um sistema de memória para escrever A Divina Comédia. A história é uma viagem literária que começa em uma Sexta-Feira Santa de 1300. Logo de início Dante se perde na floresta do erro, momento em que se encontra com o autor de Eneida, Virgílio, que faz descer o caminho acentuado que o leva aos nove círculos do inferno. É uma alegoria à representação da maldade, centrada na figura dos mais representativos traidores da história da humanidade, no caso, Bruto e Cássio que assassinaram César e Judas, o emblemático traidor de Jesus Cristo.  Em seguida Virgílio o conduz até o cume do purgatório. Por último, Virgílio leva Dante à entrada do paraíso terreno; daí ele é conduzido por Beatriz ao tão sonhado paraíso. Aqui há o resplendor da espiritualidade, os patamares dos espíritos superiores, os anjos, e, por fim, Deus.
Ainda na Idade Média, há outros referenciais da literatura que merecem destaque, por exemplo: o poeta Francesco Petrarca, escritor que tinha a filosofia e o amor como base para suas criações e Giovanni Bocaccio, amigo de Petrarca, que notabilizou sua escrita quando morava em Florença. Seu destaque do seu trabalho é O Decameron, que é uma coletânea de histórias consideradas imorais. Esse, possivelmente, é o primeiro trabalho literário sobre histórias eróticas; referência para várias gerações de jovens que tiveram a oportunidade de, poder usufruir, através da leitura, de uma literatura sem preconceitos sexuais.
A literatura portuguesa se faz bem representada por Luís Vaz de Camões. Dentre vários escritos, principalmente sonetos, a obra que o imortalizou foi Os Lusíadas. Camões fez com que navegadores portugueses transformassem deusas em mulheres, jogando fora a tese do pecado instituída pela igreja católica na Idade Média, e estabeleceu a Ilha dos Amores como sendo um território da espontaneidade e da felicidade. Foi um escritor mais que habilidoso, foi muito talentoso.
Pouco tempo depois de Camões, o espanhol Miguel de Cervantes nos presenteou com Dom Quixote de La Mancha. Possivelmente o romance mais representativo da literatura espanhola. O talento de Cervantes faz de Don Quixote (latifundiário espanhol Alonso Quijano), seu cavalo denominado de Rocinante; seu escudeiro o camponês Sancho Pança e seu respectivo jumento; e a enigmática camponesa Dulcineia de Toboso, personagens icônicos da literatura mundial. Cervantes fez seus personagens, arquétipos de uma época, circularem a Espanha renascentista combatendo os opressores e ajudando os pobres da época, que eram muitos. O imaginário ficcional do autor faz Don Quixote ver inimigos poderosos carregados de ideologias que deveriam ser combatidas. É um misto de alucinação, ingenuidade e idealismo de um incansável cavaleiro. Depois de um desafio, perdeu o duelo e teve que pagar a promessa de desistir de sua luta por um ano. Cumpriu, momento em que reviu seus ideais e concluiu que sua empreitada não passava de uma ridícula elucubração. Desistiu de suas ilusões. Afastado de suas fantasias, passou a conviver com a lucidez, em seguida faleceu.
Ainda no Renascimento encontramos William Shakespeare, que além de autor de tragédias, dramas e comédias, tinha outras habilidades que o fez um criador eclético, afinal ele também foi excelente ator e empreendedor. Dentre as 38 peças teatrais e 154 sonetos e outras poesias, de Shakespeare, Otelo é a peça teatral que merece minha releitura. Personagens como o general mouro Otelo, sua esposa Desdêmona e seu sub-oficial maquiavélico Iago marcam os arquétipos da humanidade com suas contradições psicológicas e morais. Valores como amor, traição, ciúme, inveja e racismo são o foco do enredo. Hamlet é outra obra marcante em que Shakespeare trás à tona valores morais e comportamentais como traição, vingança, incesto e corrupção. É claro que teríamos que escrever dezenas de páginas para falar de Shakespeare e de sua obra. Peças como Macbeth, Rei Lear, Júlio César, Ricardo III, Romeu e Julieta, entre muitas outras não poderiam ficar de fora do debate; todavia, deixamos o estímulo para o/a leitor/a ir fundo na literatura shakespeariana.
Seguindo pelo universo da dramaturgia lembro o francês Jean-Baptiste Molière, memorável escritor e intérprete de comédias que teve forte influência da Commedia Dell’Arte. Escreveu clássicos memoráveis como: O Tartufo, O Avarento, Escola de Mulheres, Escola de Maridos, Médico à Força, O Amor Médico, Don Juan e O Burguês Fidalgo, entre outras obras. O Avarento foi a peça teatral que marcou definitivamente meu apreço pela comédia. A ganância exacerbada pelo dinheiro é a mola propulsora do conflito dessa peça teatral. O Tartufo é outra criação que sempre fortaleceu minha paixão pela dramaturgia. No caso de O doente imaginário há um fato pitoresco. Poderia ser uma tragédia se não fosse uma comédia. Molière interpretava a personagem principal. Na peça, o pai quer um marido médico para a filha para que este cuidasse de sua saúde cotidianamente. Ele interpretava o pai, momento em que já estava, de fato, doente. Como ele era um excelente ator além de escritor, interpretou a personagem com tanta naturalidade que a platéia delirava sorrindo enquanto ele estava sofrendo, quase morrendo, doente no palco.
O romance Robinson Crusoe de Daniel Defoe, apesar de pouco comentado, digo trabalhado na escola, e nos meios literários que convivo, merece ser citado aqui por duas particularidades. Primeiro, com base no pensamento de Dietrich Schwanitz, Robinson Crusoe pode ser considerado, no contexto da literatura universal, o primeiro romance realista. Segundo, em época de fragmentação profissional, o escritor Defoe é considerado o primeiro jornalista da história. Foi ele quem criou The Review, o primeiro jornal que tinha o fim de publicar notícias e comentários. Esse é o momento histórico em que surgiu a burguesia e a modernidade. Ratificando essa tese, Daniel Defoe escreveu em 1719 A Vida e as Surpreendentes e Singulares Aventuras de Robinson Crusoe, considerado o texto que demarcou conceitualmente a modernidade. A literatura de Defoe valoriza o quotidiano da vida associando e dando ênfase ao realismo e a literatura; é a chegada da vida moderna.
Em tempo de analfabetos funcionais, de extremismo religioso, de perdas trabalhistas e sociais e de ignorância política, me convenço de que a leitura é um bom caminho para construirmos a paz através da cultura. É um caminho para sorrirmos de felicidades acreditando que a vida vale a pena ser vivida com toda intensidade.

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