Machismo e memória
Carlos Cartaxo
Escrever tem sido minha primeira atividade prazerosa; a segunda é ler; a terceira é dar aulas; a quarta é proferir palestras; a quinta é viajar; a sexta é visitar museus e por aí vai. Esses fazeres é a melhor formar de haurir os imbróglios interiores que trago comigo ou que surgem no meio das nuvens escuras do interior do meu ser. Penso que essas atividades deveriam ser prazerosas para todo mundo, para todo sujeito que traga consigo um coração cambaleante para descobertas e dúvidas que ruminam na nossa consciência. Claro que não precisa ser, necessariamente, na mesma ordem de majoração do meu deleite, da aprendizagem que gosto de desfrutar. Mas no Brasil, infelizmente, nesse início de século XXI, essas atividades, principalmente a leitura, estão em baixa; estão sob o silêncio da sola de quem não sabe onde pisar. Não obstante a lógica de uma sociedade culta, onde buscar conhecimento é uma escolha cotidiana, aqui no Brasil nem todo mundo tem essas atividades como fonte de prazer. Como enfretamento a essa vazio, continuo acreditando que a formação cultural é o alicerce estrutural das sociedades desenvolvidas, tendo em vista que essa tem sido a trajetória evolutiva de transformação do ser humano desde a Grécia antiga. Infelizmente, como a chuva que se sabe que vai cair no verão, à ascensão do fascismo, neonazismo e de valores como ódio, racismo e preconceito tem surgido e difundido a propagação da violência e consequente retrocesso evolutivo da humanidade.
Em 2020 eu não pude realizar todas as atividades planejadas, como a maioria das pessoas que pretendia fazer e não viram a flor se transformar em fruto. Contudo, escrever, ler, dar aulas e viajar, sim, consegui executar mesmo de forma precária; ministrar palestras e visitar museus, não, obviamente por causa da indesejada pandemia do coronavirus que fez desabrochar a Covid-19. Aqui cabe explicar que ainda consegui viajar porque fui em dezembro de 2019 realizar uma pesquisa sobre imigrantes brasileiros nos Estados Unidos da América e só retornei em fevereiro de 2020. Ao chegar ao Brasil, logo em seguida, os aeroportos fecharam as portas e cortaram as asas das aeronaves para evitar que o vírus continuasse a adentrar as vielas do país espalhando a Covid-19, como o vento faz com as flores para semear novas vidas. Então, por ser do grupo de risco, afinal já tenho 61 anos, fiquei isolado em casa, saindo apenas para o estritamente necessário. Por esse motivo, dentre as atividades que realizei em 2020, a leitura e a escrita foram determinantes para minha profissão e meu lazer seguro no isolamento do meu ninho residencial.
Quando eu estava nos Estados Unidos da América, aproveitei parte do tempo para concluir um romance sobre violência doméstica que eu vinha trabalhando há alguns anos. Esse livro é resultado de uma densa pesquisa com vítimas de violência doméstica; e de uma revisão interior sobre a educação machista que me foi incutido desde criança. A leitura, exercício cotidiano da minha vida, tem sido responsável por essa revisão crítica dos meus procedimentos equivocados fruto da educação patriarcal a qual fui vítima. Claro que esse acúmulo de conhecimento atingiu o âmago da minha sensibilidade e tem provocado uma constante revisão da minha história de vida. Aqui, a memória tem sido um fator histórico que tem despertado em mim reflexões e a necessidade de reeducação e, consequente, ação quanto ao combate e correção do machismo incutido na sociedade brasileira.
Dentre os livros que li e contribuiu para minha reeducação, São Bernardo, de Graciliano Ramos, foi marcante porque trata da cultura machista que permeia o personagem Paulo Honório. O autor iniciou a escrita dessa obra em 1932, mas a publicação se deu em 1936, período em que a cultura machista era reconhecida e, em parte, estimulada até pelas igrejas. A grandiosidade de Graciliano Ramos demonstra que há 89 anos ele já escrevia expondo o machismo como um problema de ordem familiar e social que, pela gravidade, se tornou caso de polícia e de justiça. O outro foco que compõe a dualidade dramática do romance é o capitalismo que se consolidou na cultura do coronelismo brasileiro que perdurou, como a fortaleza e resistência do xiquexique, por séculos e que, até hoje, se mantém como elemento presente na política nacional. Poder, domínio, controle, medo, desafio são fatores que o capitalismo trás na sua essência, assim como o machismo. A relação entre machismo e capitalismo faz parte da constituição da personagem Paulo Honório, habilidosamente construído por Graciliano Ramos. O elemento que consolida essa relação é a propriedade. Na concepção da personagem, propriedade é poder, seja a posse de uma fazenda, seja posse sobre a mulher e por extensão à família. A partir da consolidação do namoro e do casamento o sentimento de posse mantém a solidez do poder, logo do domínio, como uma fortaleza de pedras, irredutível e irremovível, no seio das famílias.
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A maturidade me deu a oportunidade de me descobrir e caminhar pelo âmago do meu ser. Após essa purgação pude perceber que há 40 anos luto contra o machismo que me foi implantado quando da minha tenra idade de criança. No romance São Bernardo pude conectar o machismo de Paulo Honório com o machismo que objetivamente faz parte do conflito do meu romance, ainda inédito, com o machismo que combato ferrenhamente porque trago comigo há décadas. Esse somatório de informações me fez despertar para a consciência de que a cultura machista ainda impera no seio de muitas sociedades e, por esse motivo, devemos lutar para combatê-lo. Essa é uma luta que deve começar na infância, por conseguinte a escola é uma instituição que deve encampar essa batalha como conteúdo programático; afinal os atos machistas atentam contra a vida; contra a liberdade; e, portanto, contra os direitos humanos.
O machismo está presente em todos os seguimentos sociais, entre homens e mulheres, crianças e adultos; e vem há anos cavalgando, alimentando mentes e corações que insistem e ser regidos pelo descompasso do falso amor. Certamente muita gente trás na memória alguma experiência machista vista ou vivida. Por exemplo, ao saber o sexo do filho ou filha prestes a vir ao mundo, começa a implantação da cultura machista quando se escolhe a cor azul ou rosa para comunicar o sexo do bebê. É uma prática que se pode dizer “natural” no universo familiar conservador; isso acontece em vários países pelo mundo.
O outro livro que nos leva a reflexão sobre o patriarcalismo, braço opressor e condutor do machismo, é o romance Liturgia do fim, de Marília Arnaud. Aqui a literatura também põe no discurso do narrador, principal personagem, a memória de ser um oprimido no seio da família, dentro de casa, e, posteriormente, um opressor na trajetória de sua própria vida. Os personagens do filho, Inácio e do pai, Joaquim Boaventura, são os vetores sequenciais na escalada reprodutiva do machismo, ficcionado por Marília Arnaud, que traça o fio memorial de histórias de vidas e da opressão sobre a mulher no berço da familiar. Essa avalanche hereditária da opressão patriarcal precisa ser barrada pelos caminhos da cultura e da educação. É um trabalho árduo que deve começar na família, todavia diante do pouco nível de leitura por parte da sociedade, principalmente das classes menos favorecidas, a educação é que deve adotar esse conteúdo em todos os níveis do currículo escolar, trazendo para si essa causa que é de toda sociedade.
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O machismo é um comportamento citado na literatura há muito tempo. Enquanto naus navegavam singrando mares entre os continentes, no final do século XV, em pleno Renascimento, início do século XVII, mais especificamente em 1603, Wiliam Shakespeare escreveu a tragédia Otelo. Nesse trabalho, o autor inglês criou a trama, cuja estrutura conflituosa foi trabalhada a partir de fuxicos criados por um assessor de Otelo, que trouxe à cena a desconfiança sobre a fidelidade de sua amada Desdêmona. O ciúme, estimulado pelo machismo, levou a um fim trágico a relação amorosa do casal. Dietrich Schwanitz sintetiza essa obra de Shakespeare afirmando: “Otelo, o negro de Veneza, marido da bela Desdêmona, incitado aos mais violentos ciúmes pelo diabo personificado em Iago, um intriguista maquiavélico cuja maldade despropositada nos inspira o mais genuíno horror” (SCHWANITZ, 2012, P. 260). Iago jogou a centelha venenosa que ateou fogo no machismo do general mouro Otelo, germinando nele um sentimento encolerizado pela sensação de empoderamento e posse que imaginava ter sobre a amada, levando-o a assassiná-la, tornando cinzas o amor que tanto lhe regozijava. A literatura shakespeariana atiça a memória e nos conduz a ilação de que a violência doméstica, o machismo, assim como o ciúme e, consequentemente, o sentimento de posse são tão antigos quanto as mais remotas lembranças passadas da humanidade.
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Os diversos gêneros literários podem nos fornecer listas homéricas de obras que abordam o tema, que não vem ao caso listá-las aqui; isso fica para quem pesquisa o assunto. Não obstante, devo registrar que há movimentos sociais engajados nessa questão, que trabalham com a determinação da força do vento em uma tempestade, tornando o tema em pauta o centro de um debate que exige mudança urgente nas relações sociais no seio familiar, no que tange a violência doméstica e a eliminação do machismo através da educação. Essa é uma luta que tem alcançado vitórias, principalmente no que concerne às leis. Só que apenas leis e a judicialização da questão, que é comportamental, não são suficientes para frear esse descompasso social que há séculos assola famílias e vidas. E nós, seres machistas e vítimas do machismo, temos a obrigação moral de resgatar nossas memórias para se reeducar, superar, reconstruir conceitos e procedimentos que resistam à cultura do machismo e, consequentemente, da violência doméstica. Os índices sobre violência doméstica são assustadores, altíssimos; números que relampejam as estatísticas e põem em dúvida todo o conceito de civilidade. Os relatos e as constatações nas delegacias das mulheres e no judiciário têm sido pauta diária nos meios de comunicação e, consequentemente, revolta por parte dos mais esclarecidos. Não obstante essa realidade, a velocidade galopante da violência doméstica continua como se nada estivesse acontecendo, como se tratasse de um cavalo a lado perdido no tempo. Até parece que não há memória história na sociedade sobre essa matéria. Portanto, educação é a palavra de ordem para se espalhar, como flores na primavera, e alcançar novas vitórias, consolidando a paz nas famílias e a evolução tão almejada da humanidade.
Referências
ARNAUD, Marília. Liturgia do fim. São Paulo: Tordesilhas, 2016.
RAMOS. Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1989.
SCHWANITZ, Dietrich. Cultura – Tudo o que é preciso saber. Alfragide, Portugal: D. Quixote, 2012.
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