Romance A família Canuto

Romance A família Canuto
Romance A família Canuto e a Luta camponesa na Amazônia. Prêmio Jabuti de Literatura.

quarta-feira, 10 de março de 2021

A sombra do ódio

 A sombra do ódio

 

Carlos Cartaxo

 

               Ao olharmos o passado da nossa história vemos conflitos em toda linha do tempo da humanidade. Seja no Império Romano, durante as Cruzadas na Idade Média ou na era moderna, as guerras e conflitos espalharam o ódio e foram exemplos suficientes para a sociedade se reinventar e procurar viver em paz e harmonia. Depois de séculos de evolução, tudo leva a crer que esta se deu de forma muito lenta, mesmo cônscios de que viver no século XXI, significa vivenciar experiências com mais qualidade de vida e segurança que no século XI. Apesar da busca incessante do amor, o ódio ainda é uma presença constante no seio social. Ainda há quem defenda e alimente guerras, o que demonstra o quanto trazemos o ranço do ódio nos pequenos e nos grandes gestos do cotidiano.

A garota atendeu ao telefone e ouviu o indesejado. O mundo desmoronou “serpenteado” por um tufão incomensurável de ira. Foi às redes sociais e viu mensagens inesperadas, indesejadas e, pasmem, inaceitáveis. Daí uma víbora balançou o chocalho repleto de aviso anunciando que seu âmago produzia um veneno que fervia os pensamentos fazendo brotar uma substância tóxica, forte, incontrolável, perigosa chamada ódio. Nesses casos de decepção, o amor pula a cerca da compreensão e cede lugar ao ódio.

               O garoto ficou absorto quando o amigo lhe confessou que viu a namorada dele beijando outro na praça ou dentro de um carro. A chave da confiança quebrou dentro da fechadura! Um galão de combustível foi despejado nas entranhas do seu ser e foi colocada uma centelha sem a mínima piedade. O sentimento de deslealdade e infidelidade gerou uma energia de repulsa que cedeu lugar ao ódio.

Esses simples exemplos acima não são suficientes para servir de reflexão e análise sobre nosso comportamento quando nos vemos diante de situações pouco confortáveis. Ao contrário, deles surge um fogo que nos conduz à chama do ódio. Muitas vezes, o ódio surge como uma reação de defesa, uma consequência de vivências negativas que proporciona um choque entre o Eu e o Outro.  O ódio se associa, diretamente, ao narcisismo. A decepção em uma relação sentimental se torna uma experiência humana que nos trás a frustração de impulsos negativos, daí o amor ceder lugar ao ódio.

O discurso de ódio é uma realidade que circula o mundo tentando retroceder ao que tem de pior na história da humanidade. Neste artigo não pretendo traçar conceitos acadêmicos sobre o ódio, mas abordar a angústia de viver em um país, porque não dizer em um mundo, onde o ódio tem imperado; embora saibamos, pelo menos no discurso, que o amor é quem sempre vence. Vence mesmo? Claro que vence! Porque só o amor é o canal que nos traz a felicidade, a essência propulsora da vida.

Foto da internet. Mural de rua do artista Shepar Fairey

               A filosofia do espiritismo explica os conflitos entre pessoas dentro da família, no trabalho, nos grupos de amigos, enfim, onde há a convivência social humana. Mas também explica os conflitos que temos com nós mesmo. Perguntas rondam nossa consciência quando nos deparamos no cotidiano com notícias de que o marido ou namorado matou a companheira em nome do amor; que o filho matou os pais por causa de questões materiais; que o ladrão matou a vítima porque esta não tinha o que o larápio queria. Essas relações, muitas vezes, trazem ranços de diferenças que alimentam valores inferiores e plantam o germe da incompreensão e do desrespeito que afloram o ódio.

               A ética estudada, desde a Grécia antiga e escrita em livros e tratados, nos põe diante da incongruência, do desrespeito e da pouca resiliência. Essa condição rodeia a aura dos seres pensantes repletos de energia fazendo emergir valores agressivos que se tornam incompreensíveis e inaceitáveis. Em nome da “amizade” se adotam caminhos facilitadores da vida que ferem comportamentos éticos e que, se negados, sorrateiramente implantam o ódio que corrói a sensibilidade que denegri a fonte do zelo e germinando o desrespeito para com o próximo. O “jeitinho” de atender aos amigos se traveste de amor, implanta o ódio a quem se contrapor e ceifa a paz como uma chaga lógica que deságua na decepção. O “jeitinho” de quem parece bonzinho quebra os comportamentos éticos e dá lugar ao ódio que agredi frontalmente quem preserva a integridade à luz da ética e fere os procedimentos e valores corretos do comportamento humano.

               O sentimento que degenera nossa humanidade faz brotar uma seiva apodrecida, uma gosma que transforma os 70 % do líquido que compõe o organismo humano em esgoto, agride cada célula do tecido muscular fazendo-os molambos em processo de decomposição. Esse é o rastro que brota nas entranhas de quem não percebe o momento em que o ódio se apropria do seu âmago e alimenta, de forma voraz, o comportamento perverso da destruição dentro de cada um.

 

O ódio na comunicação

 

               Em recente pesquisa realizada na Universidade Federal da Paraíba através da disciplina Metodologia do Trabalho Científico, do Grupo de Pesquisa Arte, comunicação e possibilidades narrativas, foi investigado programas policiais televisivos e o conteúdo veiculado por esses meios de comunicação e seus respectivos apresentadores. A base teórica da investigação foi fundamentada na tese de que as pesquisas avançadas, desenvolvidas a partir da modernidade, chegaram à conclusão de que toda verdade é relativa, por conseguinte é científica. Não obstante essa assertiva, a pesquisa realizada sobre o tema citado acima constatou o que se pode ver cotidianamente na televisão: apresentadore/as afirmando verdades sobre temas policiais que, de fato, são opiniões odiosas, voltadas para seguimentos pouco informados dos telespectadores, e emitidas sem credibilidade científica, com base apenas no “achismo”, demonstrando completa falta de conhecimento sobre verdades enquanto condutoras da ética e do respeito nas relações humanas.  

 A internet é um seguimento midiático que expõe nas redes sociais trilhas do ódio, chama que tem incitado através do discurso do ódio a proliferação da ignorância com o fim de propagar a discriminação racial, social, geográfica, política e religiosa, atingindo de frente as minorias com o propósito de desrespeitar a dignidade da pessoa humana.

O ódio também é disseminado através das relações de poder. No livro Microfísica do poder, de Michel Foucault, vemos que o poder é uma prática social que pode ser identificado nas relações afetivas, na família, no trabalho e nas relações de Estado.  Em Hamlet, texto teatral de Wiliam Shakespeare, O rei é deposto do trono porque foi assassinado pelo irmão que casa com a viúva para amenizar o ódio que poderia se instalar no reinado. Hamlet, filho do rei assassinado, se revolta contra o tio, agora rei, e contra sua mãe que aceitou casar com o assassino para continuar no seio do reinado. O amor mais uma vez perdeu o lugar cedendo espaço ao ódio. Essa mesma relação de poder, que nos remete a idade média, ocupa hoje as redes sociais na internet, subsiste sob a sombra do ódio e se instalada no judiciário prendendo Lula sem crime e deixando solto Moro, Dallagnol e a família Bolsonaro acusados de crimes com provas.

               Na sombra do ódio muitos recorrem à religião para “satanizar” outrem e, como consequência, proliferar a partir de si a chama do ódio. Outros buscam na filosofia o pensamento para alimentar ideais destruidores, nefastos na sua essência condutora e reflexiva que alicerçam a maldade como forma de atingir seus desafetos. Mas há, na política, um manancial de diferenças que fazem brotar o ódio como praga que destrói um plantio inteiro. Para se ter ideia, no último dia 25 de fevereiro, houve um ataque de nazi-fascistas quando estava sendo defendida, através da internet, na plataforma Meet, uma dissertação de mestrado que abordava sobre as discriminações enfrentadas pelas mulheres jornalistas na editoria de política em João Pessoa, sob a orientação da professora Dra. Glória Rabay. Essas ações demonstram o quanto o ódio está inserido no meio da sociedade. Vejam a postagem, em maiúscula, do grupo citado acima:

BONDE DO JAVALI. SEUS COMUNISTAS VIADOS, PRIMEIRAMENTE DIREITOS HUMANOS É O CARALHO, VIADO E FEMINISTA TEM QUE MORRER À PEDRADA IGUAL NA ARÁBIA SAUDITA, VIADO NEM É SER HUMANO, TINHAM QUE COLOCAR OS GAYS EM CAMPO DE CONCENTRAÇÃO E MATAR NA FORNALHA PRA GERAR COMBUSTÍVEL, SÓ PARA ISSSO QUE SERVEM. SE TENTAR VIR ATRÁS, DIVULGAREMOS IP, CPF E OUTROS DADOS DE VOCÊS. SE BANDIDO ASSALTA TEM QUE COMER A PRÓPRIA MÃO COMO PUNIÇÃO, SENÃO LEVA TIRO NA CADA. SÓ ASSIM O BRASIL VAI PRA FRENTE.

Esse ato seria apenas grotesco se não fosse um atentado a civilidade. O fato de ser escrito em um Português chulo e repleto de erros demonstra o quanto esses seres humanos são despreparados para viverem em sociedade enquanto grupo social desenvolvido e respeitoso no que concerne às diferenças. Essa invasão a defesa de dissertação citada é uma prova cabal do quanto os meios de comunicações têm sido canais de disseminação do ódio e da capacidade humana de agredir e menosprezar o próximo.

 

O abismo do ódio

 

Não é difícil encontrar nas calçadas, corredores e, atualmente, nas redes sociais da internet, milhões de mensagens reproduzidas em série e publicadas por pessoas cujo desejo é disseminar uma poética ilustrada, repleta de intenções aromáticas porque parecem vir imersas em essências florais. Se partirmos de uma análise semiótica do que é veiculado nos meios de comunicação, em poucos instantes serão detectadas intenções repletas de mentiras, discursos conotativos, cujas mensagens subliminares demonstram que suas ações e intenções são alimentadas pela lógica do ódio.


Escultura de Igor Mitoraj exposta em Barcelona, Espanha. Foto: Carlos Cartaxo. 

               Felizmente existem inúmeros exemplos que fazem enfrentamentos a persistência do ódio. Em um mundo calcado na falta de ética e do respeito ao próximo, há quem vereda por pelo caminho correto, embora corra o sério risco de ser conduzido à masmorra, ao cadafalso, a fogueira ou até a cruz. A lista desses anjos de luz pode ser extensa, mas faço questão de citar alguns que fazem parte da consciência coletiva de quem trilha o caminho do bem, vejamos: Jesus Cristo, Mahatma Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Nelson Mandela, Chico Xavier, entre muitos outros que habitaram esse planeta terra e outros mais que ainda habitam irradiando a luz do amor.   

               Quem alimenta o ódio sonha desfocado, borrado, porque não descobriu o que é a plenitude da vida. É o que pode ser chamado de ideologia da cegueira, abordagem que me faz lembrar a obra Ensaio sobre a cegueira de José Saramago, onde indivíduos são atingidos pela doença de uma cegueira que aflige toda uma coletividade que passa a viver de forma desumana em torno de um manicômio, não muito diferente do que vivemos nesse início do século XXI. Saramago faz bom uso de metáforas para representar o ódio, doença que nos assola até hoje. Mesmo nos momentos mais difíceis em que o ódio nos ronda, devemos respirar fundo e sem precipitação lembrar a máxima de Che Guevara “Há que endurecer, mas sem perder a ternura jamais”.

               Essa energia negativa, fantasma do ódio, que penetra, muitas vezes, na nossa cabeça e faz circular velozmente nas nossas veias sentimentos que sufocam e apertam a glote ao ponto de dilatar a pupila, nos entope de iria e faz ferver a bílis, é uma energia que só existe na ausência do amor. Portanto sempre que o ódio insistir em se apropriar da nossa humanidade, nos alimentemos de uma boa dose de sentimento, afeição, bondade e compreensão e partamos para a luta de edificar uma sociedade justa e igualitária construída à base do respeito, da bondade e do amor, como uma árvore frondosa cujo frescor não nos deixa ficar sob a sombra do ódio.

 

Referências

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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