O “achismo” no universo da comunicação
Carlos Cartaxo
É natural a preocupação da família com relação à formação dos filhos e, consequentemente, seu futuro. A educação ética e moral deve ser a luz pedagógica que clareia essa formação, cujo objetivo é constituir e consolidar uma sociedade justa e democrática, que respeita os sujeitos sociais e suas diferenças. Em alguns casos essa abordagem educativa se dá de forma conservadora, em outros, literalmente, revolucionária. Embora esse conteúdo esteja inserido na grade curricular dos programas escolares, diretamente através da sociologia e da filosofia, ou indiretamente através de outras disciplinas, há quem considere esse conteúdo desnecessário ou indesejado, portanto desqualificado. Não obstante essa posição conservadora e indo no sentido contrário dela, eu compreendo que estudos com esse foco são de extrema importância para se alcançar a tão sonhada sociedade civilizada, logo, evoluída.
Pesquisadores da comunicação têm se voltado para essa questão com afinco, no sentido de investigar até que ponto o que é veiculado nas mídias, em especial na televisão, contribui para o equilíbrio social e consolidação de uma sociedade democrática e plural. Em contrapartida, os meios de comunicação poderosos, me refiro aos grandes conglomerados corporativos, se valem do conceito de liberdade de imprensa para veicularem excessos e com eles, desvios de valores, nas informações que colocam no ar, como sendo verdades absolutas.
A comunicação sempre foi considerada um quarto poder, o que lhe dá uma importância significativa, por conseguinte garante a defesa da liberdade de expressão, que por vez, se entende como emissão e propagação de informações precisas, éticas e corretas. Essa compreensão deveria ser regra e princípio no universo da comunicação; todavia as pesquisas comprovam que há uma tendência ao contrário. Muito do que é veiculado como informação tem o efeito contrário de desinformar. Nesse sentido, se diagnostica a adoção massiva de conteúdos sem fundamentação teórica, o que se configura como prática do “achismo”. A constatação parece óbvia, mas não é. A afirmação de que o “achismo” é uma doença contagiosa, grave, pode parece leviana, contudo essa assertiva tem crédito e precisa ser analisada com profundidade para ser ratificada como a praga da desinformação.
Em recente trabalho como professor e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba na área de arte e comunicação pude constatar que parte dos comunicadores, muitos deles jornalistas, se baseiam em informações sem consistência científica para formar opinião e, como consequência, disseminar inverdades ou meia-verdade. É o conhecido jornalismo sensacionalista. Nesse caso recorro ao Dicionário de Comunicação para definir esse tipo de jornalismo:
Estilo jornalístico caracterizado por intencional exagero da importância de um acontecimento, na divulgação e exploração de uma matéria, de modo a emocionar ou escandalizar o público. Esse exagero pode estar expresso no tema (no conteúdo), na forma do texto e na apresentação visual (diagramação) da notícia. O apelo ao sensacionalismo pode conter objetivos políticos (mobilizar a opinião pública para determinar atitudes ou pontos de vista) ou comerciais (aumentar a tiragem do jornal). (...) 2. Qualquer manifestação literária, artística etc,. que explore sensações fortes, escândalos ou temas chocantes, para atrair a atenção do público (BARBOSA e RABAÇA, 2002).
A questão de proferir argumentos que, segundo o emissor, são verdades ditas e escritas, no fundo se pauta na concepção do comunicador que “acha” que determinado assunto é verdade ou mentira. O Grupo de Pesquisa Comunicação, Artes e possibilidades narrativas, do Centro de Comunicação, Turismo e Artes da UFPB, pesquisou programas policias da televisão brasileira e pôde constatar que o “achismo” é a base da fundamentação teórica que dá sustentação as opiniões emitidas por certos comunicadores. Estes profissionais desconhecem o movimento hegeliano que se resume em: tese/antítese/síntese, ou seja, a base da informação veiculada, centrada no tripé: violência, sangue e morte, não apresenta conteúdo que dê sustentação qualitativa a mensagem emitida. A base da informação veiculada é, só e somente só, “achismo”, não tem uma tese que se contraponha a antítese social, que dê sustentação teórica para que dela se tenha como resultado uma síntese. Desses programas o que fica são frases de efeitos com provocações espetaculares, sensacionalistas, como: mais um bandido tirado de circulação; bandido bom é bandido morto; aqui não tem ninguém para defender bandido; se tiver de morrer que seja o bandido; a polícia abriu fogo e meteu chumbo. Essas mensagens são proferidas constantemente, repetidas como mantra, a cada três minutos.
Essa abordagem sensacionalista que chega, ao leitor desavisado, como um petardo reluzente de verdades e soluções tem que ser abominada e contestada porque é uma fábrica que produz inverdades, por conseguinte, desinformações. A abordagem crítica em questão não deve ser focada no confronto entre bandido e polícia; mas, em narrativas que reflitam as contradições sociais do nosso cotidiano, como por exemplo: Porque existem bandidos? Que tipos de bandidos existem? O que leva um/a jovem ao mundo do crime? No combate, o bandido rico recebe o mesmo tratamento do bandido pobre? A diferença de classe é um fenômeno social e econômico gerador de bandidos? A mídia sensacionalista dá ao bandido da periferia o mesmo tratamento que dá ao bandido de paletó e gravata? Por que o tráfico de armas e drogas não é combatido, rigorosamente, pelas polícias? Por que setenta por cento dos presidiários são negros? Por trás dessas questões deveriam está abordagens à legítima defesa do Estado de Direito, do combate ao autoritarismo e ao abuso de poder. Eis a questão que precisa está viva e presente na democracia e nos meios de comunicação!
Por trás da narrativa sensacionalista há a multiplicação exponencial do discurso de ódio; por exemplo, dissemina informações inverídicas sobre direitos humanos. A tese de que bandido bom é bandido morto é uma constante subliminar que programas policiais disseminam baseada no discurso de que a salvação social não é a redução da diferença de classe, mas a morte dos bandidos. Antes de tudo, é bom definir que essa é uma questão conceitual. Como alguém ocupa o assento de um estúdio de rádio, televisão ou de gravação de vídeo e se apropria de um microfone para emitir informação que não conhece? Falar de violência, de polícia e bandido exige conhecimento, estudos científicos sobre o tema; se assim não o for, o conteúdo proferido é puro “achismo”, portanto suspeito pela ótica do bom jornalismo, da ética e da verdadeira liberdade de expressão.
Os comunicadores pesquisados demonstram que nunca leram sobre direitos humanos e se arrogam ao “achismo” denotativo que denigre o conceito de direitos humanos; se arvoram a falar de direitos sem conhecê-los. Nunca leram Nietzsche para entenderem as relações de macro e micro poder; para adquirirem a informação de que o conhecimento é uma característica nata, evolutiva, do ser humano. Consequentemente, sem encontrar neles conteúdo substancial sobre as informações por eles veiculadas, sou levado a questionar: Como um comunicador ousa falar de violência sem nunca ter lido o livro Brasil nunca mais, publicação da Arquidiocese de São Paulo ou o livro Direitos Humanos: Violência e diversidade, publicação do CCTA/UFPB? Essa é uma questão que resulta da constatação de que o desconhecimento gera a desinformação que induz a concepções inverídicas ou, no mínimo, suspeitas.
Outra reflexão precisa ser abordada aqui, que é o fato de que por trás dessa questão ética e moral está a tão almejada audiência nos meios de comunicação, o que significa dinheiro e poder; em busca dessa dita cuja, se dá um desvio na ética e se usa o “achismo” como fonte de verdades, emitindo informações que ferem a liberdade de expressão porque, em muitos casos, contribuem pouco ou quase nada, com a informação ética. Um apêndice que fortalece essa prática é o investimento que empresas fazem nesse tipo de programação. Cabe a nós pesquisadores alertarmos a sociedade sobre essa prática nefasta que emite, em forma de impropério, informações que ratificam a disseminação do ódio e a falta de ética em nome da liberdade de expressão.
Alguns veículos de comunicação e, mais especificamente, comunicadores, insistem em afirmar que João Pessoa é a cidade mais verde do Brasil. A partir de algumas informações duvidosas, décadas atrás, essa inverdade se expandiu pelas redes sociais. Recentemente a célebre paraibana, Juliette Freire, falou essa inverdade no Programa do Faustão da rede Globo sem se dá conta de onde tirou essa matéria. Infelizmente essa é outra informação baseada no “achismo” porque não tem base científica alguma. Não há estudos que comprovem esse argumento falacioso, há muito divulgado por alguns comunicadores no Estado da Paraíba. Por muito tempo foi divulgado que João Pessoa, que deveria se chamar Parahyba, era a segunda cidade mais verde do Brasil. Agora se espalha que é a primeira. O “achismo” se expande como fogo no palheiro, baseado em ilações que não têm base científica, porque não são oriundas de um conteúdo cuja fonte gera o que não é criado a partir do sentido concreto e real da informação.
A ausência de informações com base científica nos programas sensacionalistas é tão acentuada que alguns comunicadores falam de fome sem entender uma vírgula do papel da assistência social. Confundem assistência social com assistencialismo. A fome é uma praga do mundo não civilizado e está diretamente ligada a diferenças sociais, a concentração renda e corrupção, mas o/as comunicadore/as senhore/as da verdade ousam falar de corrupção sem ter como base as políticas de combate a fome e a defesa da ética na política, ações fáceis de serem assimiladas porque são bem sucedidas no mundo contemporâneo.
A lógica da tão combatida desinformação do “achismo” é: quanto mais gente imbecilizada, mais dificuldades terão os desinformados de decodificar as verdades e, consequentemente, as inverdades. É incoerente pensar que a emissão de meias-verdades significa formação, ao contrário, o desconhecimento do conteúdo das matérias veiculadas gera inverdades que repetidas inúmeras vezes, cotidianamente, adquirem senso de credibilidade, embora sejam inverídicas.
Há inúmeros artigos científicos sobre o tema abordado aqui. Todavia cito o artigo “Jornalismo Policial: Influência no Pensamento de Crianças e Adolescentes” de Elisângela Marinho Bezerra e Roberia Nadia Araujo Nascimento da Universidade Estadual da Paraíba – Campina Grande, Paraíba, apresentado no Intercom pelo fato deste ser voltado para o universo pedagógico. A pesquisa realizada com crianças de 12 à 14 anos de turmas do 7º e 8º ano da Escola Maria de Socorro Aragão na cidade de Monteiro-PB. O instrumento metodológico utilizado foi a aplicação de um questionário para diagnosticar as informações e opiniões emitidas no programa policial Cidade Alerta, que tinha como âncora o jornalista Marcelo Rezende, na Rede Record. A hipótese do artigo é “que o jornalismo policial produzido no Brasil não é adequado para as crianças e adolescentes e se justifica por se constituir material capaz de provocar reflexões sobre a qualidade e questões éticas que abalizam esse tipo de conteúdo jornalístico” (BEZERRA e NASCIMENTO, 2015). Esse artigo ratifica a tese aqui defendida de que o jornalismo policial, dá forma como é gerido, fortalece a prática do “achismo” na comunicação .
O jornalismo policial sensacionalista não é errado como muitos críticos afirmam, ele pode sim contribuir de alguma forma, talvez em uma parcela bem pequena para o desenvolvimento intelectual de nossa sociedade. O grave e crucial erro está no fato de não levar a sociedade a refletir sobre os assuntos que estão por trás das notícias transmitidas. Se ater apenas a dualidade Bem e Mal, é um equívoco gravíssimo, condenar pessoas por crimes cometidos, sem ao menos mostrar ao público quais os verdadeiros motivos que levaram aquele ser - humano a cometer tal ato, é contra a ética jornalística, que nos orienta a mostrar sempre os dois lados da história, e de todos os ângulos possíveis e imagináveis (BEZERRA e NASCIMENTO, 2015).
As considerações parciais do trabalho do Grupo de Pesquisa Comunicação, Artes e possibilidades narrativas, que motivaram esse artigo, aqui publicado, demonstram que é preocupante o que vem sendo veiculado na televisão aberta brasileira, principalmente, nos programas sensacionalistas de cunho policial. A não fundamentação do conteúdo veiculado cotidianamente, pelos comunicadores dos programas policiais, pode causar um desserviço à sociedade e a democrática porque dissemina a cultural da meia-verdade por meio da argumentação falaciosa do “achismo”.
Referências
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil nunca mais. Petrópolis: vozes, 1986. 12ᵃ Edição.
BARBOSA, Gustavo; RABAÇA, Carlos Alberto. Dicionário de Comunicação. Editora Campus. 5 edição. 2002.
BEZERRA, Elisângela Marinho; NASCIMENTO, Roberia Nadia Araujo. Jornalismo Policial: Influência no Pensamento de Crianças e Adolescentes. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal - RN – 02 a 04/07/2015.
BRUM, José Thomas. Nietzsche: as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Companhia das Letras,
RABAY, Glória; BATISTA, Gustavo B. de M; OLIVEIRA, Hilderline Câmara de; ARAÚJO Jaíne; FRANÇA, Marlene Helena de Oliveira; IRELAND, Timothy Denis (Orgs). Direitos Humanos: Violência e diversidade/E-book. João Pessoa: Editora do CCTA, 2020, Vol 2.
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