Primeiras impressões
Carlos Cartaxo
Nesse momento volto a escrever sobre arte e ensino de arte, depois de alguns poucos anos sem tocar nesse assunto. A abertura da 34ᵃ Bienal de Arte de São Paulo, agora em 4 de setembro último, me fez pensar a tradicional, e talvez ultrapassada, pergunta: isso é arte? Essa 34ᵃ Bienal tem como tema a frase Faz escuro mas eu canto. São 91 artistas expondo, oriundos de 39 países. Uma marca importante dessa Bienal é a exposição da arte indígena. Falar da importância de uma Bienal de Arte é desnecessário; basta registrar que a Bienal citada nos presenteia com mais de mil pecas de arte expostas no Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera em São Paulo. Além da pluralidade criativa que expõe as possibilidades narrativas que a arte trás consigo, merece o registro de que a entrada na bienal de São Paulo é gratuita, o que fortalece a tese de que nem sempre arte é produto comercial, mas de deleite porque é uma expressão humana.
Eu tive a oportunidade de vivenciar uma Bienal de Arte de São Paulo, da mesma forma a 52ᵃ Bienal de Arte de Veneza, em 2007. Essas e outras experiências com arte e leituras, muitas leituras, contribuíram para o meu entendimento, hoje, do papel da arte no contexto pós-moderno e, aceitar o conceito de que arte é aquilo que o leitor entender como sendo arte. Esta leitura faz todo sentido, afinal é época de bienal de arte de São Paulo; é época da arte ratificar e se estabelecer como a liberdade de expressão humana. Um evento do porte de uma Bienal de Arte é um encontro de ideias, percepções, técnica, pintura, colagem, performance, vídeo, instalações e happening, além de outras possibilidades de expressões que podem surgir. Uma Bienal de Arte é um acontecimento que rompe barreiras, conecta países e o mundo propiciando intercâmbio cultural, ensino e aprendizagem.
Para compreendermos nossa cultura, precisamos tratar as tendências estéticas como uma disciplina variável e dúctil que propiciará a descoberta de riquezas, por exemplo, de nossas tradições visuais que estão inseridas em um contexto cultural, que evidentemente, amplia o
campo da historia da arte (CARTAXO, 2015, p. 449).
Essa concepção ratifica que o conceito tradicional de estética precisa ser revisto através de uma leitura crítica sobre a dita alta cultura, o que vem sendo feito desde a Grécia antiga e que deve continuar. Pode ser redundante falar de alta cultura ou cultura clássica porque, para muitos, o conceito desta é intocável; todavia a tradicional bandeira da alta cultura deve ser olhada com uma leitura pós-moderna porque sua aceitação já não é consensual.
Ao contraio, esse posto hierárquico elitista perdeu força e reconhecimento, tendo em vista que a estética está presente a todos os campos das atividades culturais. Isto significa dizer que estamos vivendo sob o efeito da multiculturalidade (CARTAXO, 2015, p. 449-450).
Com base em Nestor Garcia Cancline busco no conceito de multiculturalidade a resposta para uma leitura pós-moderna que a definição de estética suporta na atualidade. A questão não passa por gostar ou não gostar; mas por compreender as transformações sociais, econômicas e culturais pelas quais a sociedade passa. Eu posso não gostar de um trabalho artístico, mas jamais afirmar que não é arte. A pluralidade do conhecimento e o respeito pelo trabalho e pela escolha de outrem, quanto à arte, são condições essenciais para que o debate seja estabelecido de forma construtiva.
Eu tive a oportunidade de ler uma postagem de um professor de arte, em uma rede social, em que ele dizia que uma escultura de madeira, que sugeria uma árvore, não era arte. Até hoje não sei se a divergência era técnica, ideológica ou desconhecimento sobre história da arte, mais especificamente, a pós-modernidade. A primeira impressão que eu tenho é que, muitas vezes, só se tem informação sobre a arte acadêmica e a moderna, então, no caso citado, o conceito verdadeiro de arte adotado foi o da modernidade, que se resume em definir como obra de arte aquela que é original, única e autêntica. No caso da arte acadêmica, esta ficou em segundo plano porque sua criação era basicamente a reprodução da técnica. É fato que os Museus de Arte Moderna abriram e abrem as portas para redefinição da arte, como consequência se tem a arte contemporânea que surgiu para quebrar de vez com paradigmas como a do professor citado acima.
Além do conhecimento teórico e da formação artística, tenho a segunda impressão de que o/a professor/a precisa trabalhar com uma metodologia adequada ao ensino de arte. A metodologia construcionista, por exemplo, é um procedimento que tenho adotado desde o meu curso de doutorado. A proposta ironista também é uma corrente metodológica adotada por alguns artistas, que pode ser adotada no ensino de arte. Esses procedimentos surgiram a partir do contexto pós-moderno onde o sujeito ativo do processo de aprendizagem é o elemento construtor do conhecimento; o professor ou instrutor é apenas o fio condutor da aprendizagem, nunca o proprietário do saber.
Outra impressão, que trago comigo, é que apreciar, vivenciar, fruir e ensinar arte são procedimentos, necessários ao ser humano, que exigem conhecimento, leitura e experiência. Essa asserção ratifica a tese que defende a inserção do ensino de arte, concomitante as experiências artísticas desde a primeira infância porque a arte contribui para o equilíbrio emocional e a formação cultural da criança, tornando-a um adulto culto, crítico e sensível. O personagem Rubens, já citado, critica a pedagogia predominante na maioria das escolas e afirma que
Não há mais quem aguente a estrutura surreal alicerçada em lacunas entre teoria e prática, prazer e saber, e motivação e aprendizagem. Ela passou a existir dentro de um abismo deformado, cujas faces e ângulos estão cada vez mais afastados da realidade. A escola se tornou uma úlcera da sociedade difícil de cicatrizar. E o construcionismo pode ser um caminho para eliminar essa úlcera (CARTAXO, 2015, p. 506).
O construcionismo foi pensado, inicialmente por Seymour Papert, todavia se tornou uma metodologia relacionada a um produto, que, no caso das artes, pode ser uma imagem, um texto, um espetáculo cênico, uma instalação ou uma atividade acadêmica ou escolar, onde o conteúdo do trabalho esteja relacionado à realidade dos sujeitos envolvidos ou com o espaço, área ou local em que foi produzido, realizado e/ou utilizado. Cito essa abordagem na minha tese de doutorado e concluo que “é um processo em que há interação entre as pessoas e o conteúdo trabalhado” (CARTAXO, 2015, p. 507). É importante registrar que o construcionismo teve como âncora o pensamento crítico de Michel Foucault para enfrentar a força das relações de poder, e também se ancorou na pós-modernidade para confrontar os cânones do saber e do conhecimento.
Pode parecer repetitivo, mas não me entrego à redundância e repetirei quantas vezes for necessária a afirmação de que a falta de leitura é a responsável por conceitos repletos de verdades. Quando essas verdades partem de um/a professor/a a situação se agrava porque se reproduz uma informação defasada, ou melhor, ultrapassada por puro desconhecimento. É necessário ratificar que toda verdade é relativa, portanto quando alguém estufa o peito para afirmar que sua verdade é absoluta, vale a precaução de que o dono da verdade pode ser o rei da fraude. Vivenciar e fruir arte são as primeiras impressões que nunca largam do consciente e do inconsciente do ser humano.
Referências
BURR, Vivien. Introducció al construccionisme social. Barcelona: Universitat Oberta de Catalunya: Proa, 1997.
CANCLINE. Néstor García. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo, EDUSP, 1998.
CAREY, John. ¿Para qué sirve el arte? Barcelona: Debate, 2007.
CARTAXO, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa, Editora do CCTA, 2015.
COELHO, Teixeira. Moderno Pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 5ᵃ Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
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