A estética Totoniana
Carlos Cartaxo
Há quarenta anos, década de oitenta do século XX, eu fazia o curso de Educação Artística na UFPB quando tive a oportunidade de conhecer, estudar e trabalhar com Carlos Antonio Bezerra da Silva, o talentoso Totonho. Nesse período fui Tesoureiro, depois presidente da FPTA- Federação Paraibana de Teatro Amador. Nessa segunda gestão Totonho também fazia parte da diretoria; e, dentro do planejamento da entidade, eu visitava o Rio de Janeiro com certa frequência para participar de cursos, encontros de artes cênicas, visitas à Escola Nacional de Circo; período em que vi muitos espetáculos teatrais, nos mais diversos gêneros, e muitas vezes me hospedei na Casa Paschoal Carlos Magno no bairro Santa Tereza. Na volta à Parahyba sempre repassava as vivências e os projetos a serem implementados para a diretoria da FPTA. Em uma dessas idas ao Rio, eu tive a oportunidade de presenciar e vivenciar uma manifestação pelas eleições diretas; houve reação da polícia e uma dose violenta contra a manifestação pacífica e democrática. Eu sempre tive engajamento político desde a adolescência e participar daquele ato político, foi, para mim, um momento de aprendizagem e resistência; de modo consequente, ao retorna a Parahyba contei À diretoria da FPTA essa vivência política e vi os olhos de Totonho, que estava presente, um brilho de quem entendia e partilhava da luta pela democracia. Em seguida, dessa fase, Totonho arrumou a mala e foi morar no Rio de Janeiro com a missão de fazer um brilhante trabalho com crianças que viviam em condições de rua; deu continuidade aos estudos fazendo pós-graduação; criou e dirigiu a Organização Não Governamental “Projeto Ex-Cola”; ele atuou também no projeto OBA - Oficinas Básicas de Arte, que era ação cultural contra a violência e , por conseguinte, a sua vertente musical.
Esse final de semana tive a oportunidade de fazer uma imersão na obra musical de Totonho e, especificamente, pude apreciar, ouvir e decodificar, o álbum “Samba Luzia Gorda” de Totonho e os Cabra. De imediato, lembrei dos nossos estudos de estética Aristotélica na UFPB, na década de 80, século XX; não obstante, a estética formal dos conceitos Aristotélicos que fomos introduzidos, situei a estética Totoniana nos conceitos da pós-modernidade, contexto que vivemos nesse início de século XXI, terceiro milênio e que está bem localizada na obra do compositor e cantor aqui lembrado. A estética Totoniana trás consigo as bandeiras pós-modernas de: 1) ser uma obra aberta, disjuntiva e plural, contrariando o espaço disjuntivo e fechado da modernidade; 2) ter uma base na cultura popular; 3) transita entre estilos, ou seja, erudita pela criação rebuscada da literatura de Totonho; contemporânea pelo fato da pluralidade instrumental das composições.
Encontro da obra de Totonho a fala do meu personagem Rubens do meu romance “Amor invisível: artes e possibilidades narrativas” quando diz que:
一 A pós-modernidade é um beija-flor que voa ao passado para trazer o pólen que se junta aos problemas do presente, contextualizando o imbróglio do cotidiano 一 pulsando didaticamente 一 como, por exemplo, a contaminação do meio-ambiente, a discriminação racial e a igualdade de gênero. Essa junção de tratamentos ideológicos, culturais e sociais, desperta para uma ordem que provoca uma análise crítica e desencadeia atitudes construtivas, e colocando a sociedade defronte do tão sonhado progresso que a industrialização tanto propagou” (Cartaxo, 2015, p.363).
Na música “Tem mais igreja que supermercado” , Totonho coloca suas composições dentro de um parâmetro estético pós-moderno que possibilita a abertura do conteúdo além de uma abordagem apenas religiosa. Com essa composição, perfilo Totonho na categoria de artista ironista, aquele que extrapola, em muito, o enquadramento apenas romântico ou mesmo emocional. Inclusive, o instrumental da música citada, faz um hino que deveria ser abordado nas ruas, praças, mesas e até em igrejas.
TEM MAIS IGREJA DO QUE SUPERMERCADO
(Totonho)
A alma anda roubando o alimento do corpo
Tem mais igreja do que supermercado
Tem muito mais igreja do que supermercado
E a graninha do pacote de feijão
É a mesma grana pra obter a salvação
Tem mais igreja do que supermercado
Tem muito mais igreja do que supermercado
Em nome do pai, do filho, do Espírito Santo
Passe pra esse canto qualquer coisa de valor
Em nome do pai, do filho, do Espírito Santo
Porque Jesus não quer apenas teu amor
Ó Deus, me faz um instrumento teu
Que apenas tu possa me tocar
Que eu não quero virar
O pasto do pastor
A brasa do defumador
Uma parte do terço
A farsa da fé tirada de mim
E vendida pra mim mesmo
Tem mais igreja do que supermercado
Tem muito mais igreja do que supermercado
A música Nhém, nhém, nhém é outra obra prima que demonstra sua relação com a igreja e sua transcendência cultural; afinal, seu ser foi batizado; em seguida, ele trafega pelo Tibete, passa pelo Zapatismo mexicano, deságua em uma aldeia Tabajara no litoral paraibano e vai pelo mundo à fora feito um cabra desenbestado; enfim a estética Totoniana é universal.
Nhém Nhém Nhém
(Totonho & Os cabra)
Desde que fui batizado
Minha alma amarelou
Minha pele era negra, desbotou
Hare Krishna em labareda
Pega teu kichute e dança, uma valsa
Felicites os Tibetanos, pela calma
O furor da inteligência
Fez a USA usar bem
Uma quenga zapatista
No alto de Suassuna
Toque sanfoneiro
Nessa pele de cordeiro
Beba esse chá de bússola
Feito por esse mestiço
Pelas ondas tabajaras
Ouço o rinchar das mulas
Um dia ainda te escrevo
De um banco de praça da cidade do Cabo Canaveral
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Nhém nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Hare Krishna em labareda
Pega teu kichute e dança, uma valsa
Felicites os Tibetanos, pela calma
O furor da inteligência
Fez a USA usar bem
Uma quenga zapatista
No alto de Suassuna
Toque sanfoneiro
Nessa pele de cordeiro
Beba esse chá de bússola
Feito por esse mestiço
Pelas ondas tabajaras
Ouço o rinchar das mulas
Um dia ainda te escrevo
De um banco de praça da cidade do Cabo Canaveral
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Porque a areia é fina
Ciranda é uma roda
Por que sonhos não se limitam à artistas
Os tubarões de Pernambuco não toleram surfistas
Nhém nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Nhém nhém nhém
Consciente de minha afeição pela obra de Totonho como compositor, cantor e músico, me coloco na posição de suspeito, por tercer além do aqui escrito, um mergulho filosófico ou estético sobre a obra do egrégio artista; todavia me dou o direito de convidar a todo/as para mergulhar, com profundidade, no trabalho desse nobre cancioneiro paraibano. Como a estética Totoniana toca o âmago da minha sensibilidade; é possível que também lhe emocione tanto quanto faz comigo. Que assim seja, na igreja ou no palco que for!
Fonte:
Cartaxo, Carlos. Amor invisível: artes e possibilidades narrativas. João Pessoa: Editora do CCTA, 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário