O aluno R
Carlos Cartaxo
Os resultados, quantitativos e qualitativos, da escola brasileira são desafios que parecem sem fim. Minha trajetória como profissional do ensino de arte e da comunicação tem conduzido meu olhar para essa questão paradigmática. Pode parecer redundante a expressão questão paradigmática, afinal toda questão traz em si um paradigma; mas, não é bem assim; algumas dúvidas vão além de uma simples pergunta e, por isso, precisam de um tratamento acadêmico; um estudo profundo que seja muita mais que apenas uma resposta baseada no achismo. E, o caso do aluno R é um caso de perquirição que me faz reunir meus conhecimentos da comunicação com os da pedagogia da arte. Nesse sentido recorro ao livro “O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média”, de minha autoria, para escrever esse artigo.
A história, através dos inúmeros artigos e livros publicados, nos mostra que os problemas das escolas brasileiras são complexos porque fazem parte de incontáveis fatores que vão da falta de recursos, aos recursos mal aplicados, até péssimas condições de trabalho, além das questões eminentemente pedagógicas.
É elementar saber que todo processo comunicativo se dá através de um emissor, da mensagem, e um receptor. Esse conceito deveria fazer parte da formação docente e, se tratando de ensino de arte, é, até óbvia essa necessidade, porque trata-se de ensinar o que é subjetivo. Embora toda expressão artística traga em si uma leitura conotativa, quando se trata de aprendizagem, faz-se necessária uma abordagem também denotativa. Nesse sentido, vou buscar no último capítulo do livro “O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média”, A experiência do NPI, uma resposta para o conteúdo deste artigo.
A experiência do NPI foi um caso por mim vivenciado quando era professor de arte no Núcleo Pedagógico Integrado, da Universidade Federal do Pará, na última década do século XX. Parece que faz muito tempo, contudo, a experiência narrada no livro citado, faz-se presente em muitas escolas hoje. Por isso, transcrevo aqui como fonte de reflexão crítica e analítica dos baixos índices da escola brasileira.
Em muitos casos, o ensino de arte é tratado apenas pela ótica do fazer artístico; o pedagógico fica em segundo ou até último plano. Essa lacuna quebra o processo comunicativo da emissão qualificada da mensagem do emissor, o professor, para o receptor, o aluno. Inclusive a tríade, aluno, professor e escola não se efetiva e, até a família fica de fora. No caso da tríade citada, a escola é representada pelos serviços técnicos: pedagogos, psicopedagogos, psicólogos e assistentes sociais.
Toda escola deveria ter a estrutura técnica do NPI/UFPA; lá o ensino de arte trabalhava, imagino que hoje ainda trabalha, “em conjunto com os serviços técnicos, de forma que pudesse haver acompanhamento e evolução no processo de ensino-aprendizagem através da arte. De maneira, que quando são diagnosticados distúrbios no processo educativo, além do professor e do aluno, a constatação passa também pelos serviços técnicos. Com essas condições de trabalho e a estrutura para um bom acompanhamento e evolução do aluno e do professor, o trabalho com as artes cênicas, em sala de aula, foi responsável pela solução de um distúrbio escolar, que através de jogos dramáticos e do teatro, foi localizada a causa e consequentemente estudada. sendo iniciado o processo de solução, ou seja, um trabalho dirigido em sala de aula, em casa e um acompanhamento sistemático pelo setor técnico, o que resultou em amenizar o desvio que o distúrbio provocava penalizando o aluno R” (CARTAXO, 2001, p. 189).
”No início do ano letivo, a primeira aula, geralmente, era de apresentação e de definição do papel e do conteúdo da disciplina, concomitantemente com o papel do aluno e do professor no contexto do processo pedagógico da escola” (CARTAXO, 2001, p. 190). O programa da disciplina iniciava com atividades lúdicas para entrosar os alunos entre si e facilitar a liberação comportamental da turma; assim evitava o surgimento de pequenos grupos. A atividade programática seguinte foram jogos dramáticos.
O processo de realização dos jogos dramáticos consistia de: 1) Cada discente escolhia um assunto de seu interesse; 2) agrupa-se os temas que têm relação entre si; 3) formam-se grupos por afinidade de conteúdo; ressalta-se que “a formação de grupos por alunos, cujos temas têm uma relação entre si, é importante porque o trabalho se desenvolve a partir da preocupação e visão que os mesmo têm do mundo, rompendo o mau hábito de que só se trabalha bem se for com o melhor amigo” (CARTAXO, 2001, p. 190); 4) após os grupos constituídos, se realizaram os jogos dramáticos, direcionados a ideia central de cada grupo constituído (capítulo II do livro citado); 5) Em seguida, cada grupo criou a sua própria história, a partir de relatos contados ou criados, algumas mescladas, e selecionadas. “como surgem mais de uma ideia, nem sempre há consenso no grupo, o que acarreta discussão, que é salutar; mas, que deve ser bem orientada pelo professor para evitar conflitos pessoais, dispersão do grupo e tempo desperdiçado nessa fase que é a base do trabalho” (CARTAXO, 2001, p. 190). Foi nessa fase que surgiu o conflito com o aluno R.
Em um determinado grupo, cada aluno sugeriu uma história e o grupo selecionou a que mais impressionou; esse método é um trabalho pedagógico de introduzir a capacidade analítica, crítica e seletiva de cada um. Nesse grupo a história escolhida foi de uma aluna tímida; contudo, o aluno R, membro do grupo, não gostou da escolha e se sentiu rejeitado; daí “partiu para a violência; pegou o trabalho de inglês da aluna, que estava, próximo, e rasgou; a aluna reagiu chorando baixinho, cabisbaixa na carteira. A turma, conhecendo as reações inesperadas do aluno R, comunicou ao professor que aquele aluno tinha, às vezes, um comportamento estranho” (CARTAXO, 2001, p. 190).
Esse fato ocorrido em sala de aula diagnostica o que a psicologia define como sendo um distúrbio de escolaridade, ou seja, falta de sociabilidade e indisciplina recidivante (PAWEL, 1992).
O professor afirmou que iria falar com a professora de inglês comunicando-a do incidente com a aluna. “Uma psicóloga e uma pedagoga, que vinham acompanhando o aluno R desde séries anteriores, informaram que o mesmo tinha agredido e desafiado professores em outras situações semelhantes” (CARTAXO, 2001, p. 192). Informado sobre a situação do aluno R, o professor compreendeu que estava diante de um distúrbio escolar.
Na estratégia metodológica adotada pelo professor, as aulas de arte continuaram com os grupos na criação das histórias selecionadas. O aluno R se isolou, não quis participar de algum grupo e o professor concordou com a escolha dele. O docente deixou o aluno livre, não exigindo atividades escolares. Os grupos continuaram trabalhando com atividades lúdicas e jogos dramáticos direcionados às histórias que estavam sendo criadas. O professor percebeu que o aluno R estava olhando discretamente as atividades desenvolvidas em sala de aula. O estudo comportamental do professor e da equipe técnica diagnosticou que o aluno R se sentiu rejeitado pelo processo de aprendizagem.
“Quando um aluno tem um comportamento que exige atenção como se fosse o dono da verdade, querendo ser o centro das atenções é porque ele se sente rejeitado, na família ou na escola,e como forma de compensar, ele age querendo para si todas as atenções possíveis” (CARTAXO, 2001, p. 1923). Partindo do princípio comportamental sobre a rejeição, o papel do professor foi inverter esse quadro. A estratégia foi a aproximação, paulatina, do aluno, fazendo com que este visse que o seu lugar estava reservado na turma. Nesse ponto do processo foi importante colocar o respeito ao próximo como uma condição de equilíbrio e aceitação. Essas ações estimulam a autoestima do aluno e nunca devem penalizá-lo, como se este tivesse um comportamento fora do padrão porque ele mesmo quer. Nessa fase o professor se aproximou do aluno R para enaltecer suas qualidades. R foi adquirindo confiança e se aproximando do professor até o dia em que um grupo ficou impossibilitado de ensaiar porque faltou um componente. R foi convidado pelo professor para substituir o aluno ausente, ele resistiu e não demonstrou interesse em participar do grupo, mesmo que fosse apenas por um dia. O professor conversou com um membro do grupo, que tinha uma boa relação com R, para convidá-lo a participar naquele dia; o professor foi acompanhar o trabalho dos outros grupos. Com o convite, poucos minutos depois, R já estava agrupado participando da atividade; o pequeno texto que em três aulas não havia sido decorado pelo colega ausente, R decorou naquela única aula. A volta do aluno titular da personagem deixou R fora do grupo. O aluno R voltou a ficar isolado na sala. O professor procurou saber o porquê. O aluno R disse que não queria voltar a atuar. O professor continuou a trabalhar, sutilmente, a autoestima de R enaltecendo sua criatividade, seu talento e o seu desempenho naquele único dia em que ele atuou no grupo. O professor procurou o grupo para que este o convidasse para reintegrar o trabalho. O aluno demonstrou interesse, mas o texto teatral já estava escrito e não havia mais personagens para serem interpretadas; foi sugerido criar uma nova personagem na história. Pela característica de sua personalidade, R aceitou interpretar um leão; pelo bloqueio do distúrbio escolar, ele preferiu usar máscara; ensaiaram e a apresentação foi um sucesso. O trabalho teve um resultado tão bom que, além de apresentarem no NPI, foram convidados para se apresentarem fora da escola.
O corpo técnico e os pais de R ficaram entusiasmados com o desempenho do aluno. A experiência demonstrou que R começou a participar de atividades lúdicas, jogos dramáticos e fazer teatro na escola; o seu desempenho evoluiu em todas as disciplinas e na sua relação com os colegas e professores; sua agressividade diminuiu; ele tornou-se mais espontâneo e passou a respeitar os membros da escola como parceiros de uma mesma comunidade.
Esse foi um caso concreto de distúrbio escolar em que, através do ensino da arte, se trouxe o discente para o seu meio sem ações equivocadas de punição, mas ao contrário, estimulando suas qualidades e demonstrando a potencialidade que todo aluno tem. É certo que a escola não é a panaceia para distúrbio escolar, de maneira que é fundamental a participação da família e tratamento especializado no processo corretivo de ajuda.
Com os resultados obtidos e a continuidade do trabalho na escola e com atenção de um profissional da psicologia, nota-se que o distúrbio escolar pode ser, paulatinamente, corrigido. Como conclusão, afirma-se que diagnosticar os processos evolutivos da afetividade, percepção e cognição do aluno é uma condição para se tratar cada discente com respeito e atenção que ele precisa e merece para ter um bom desempenho escolar.
Referências
CARTAXO, Carlos. O ensino das artes cênicas na escola fundamental e média. João Pessoa, 2001, edição do autor.
PAWEL, Claudio. Educação - Distúrbios escolares. Viver Psicologia, Cotia SP: n° 03, outubro/ 1992, p. 36 a 38.
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